Texto de Fabíola Simões publicado originalmente em A Soma de Todos os Afetos
Marcos comia compulsivamente. Elisabete postava selfies exaustivamente. Paulo trocava de parceiras diariamente. Catarina limpava a casa exageradamente. João comprava tudo o que via incansavelmente. Ana ficava conectada obsessivamente. Júlio se exercitava forçadamente. Rita patrulhava a vida alheia inesgotavelmente. Kleber se preocupava com a saúde exageradamente. Helena poupava dinheiro neuroticamente. Cícero trabalhava opressivamente. Joana fumava insistentemente.
Viver é conviver com faltas, com buracos, com incompletudes que de vez em quando nos visitam de forma mais aguda e intensa, e em outros momentos nos deixam em paz.
Faz parte da condição humana, que é limitada e cheia de conflitos, a sensação de incompletude. Faz parte de todos nós a angústia, o desejo de pertencimento, o apego, a insegurança. Porém, em alguns momentos, essas sensações ficam mais latentes e, sem nos dar conta disso, muitas vezes lidamos com nossas carências de forma distorcida.
Camuflamos nossos buracos interiores comendo demais, postando selfies demais, competindo silenciosamente pelo melhor carro ou closet, acumulando demais, controlando e patrulhando a vida alheia demais, bebendo e fumando demais, nos exercitando ou trabalhando demais, reforçando as nossas próprias qualidades demais, poupando ou gastando demais.
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Todo excesso esconde uma falta. Descobrir que nossas ações nem sempre são aquilo que são, e sim sintomas de algo que estamos encobrindo inconscientemente, pode ajudar. Pois muitas vezes tentamos combater o sintoma, mas não nos aprofundamos na causa, e por isso não obtemos resultados satisfatórios. Falar para a sobrinha que ela precisa comer menos ou para a tia querida que ela precisa desligar um pouco o celular nem sempre traz resultados positivos, simplesmente porque é preciso olhar mais profundamente. É preciso olhar com mais empatia para buscar as faltas que cada excesso tenta encobrir.
Exercitar, postar selfies, ficar conectado à internet, abastecer a despensa, comprar aquilo que lhe agrada, se preocupar com a saúde, se preocupar com aqueles que ama, tomar uma bebidinha de vez em quando, falar das próprias qualidades… tudo isso é absolutamente normal. O problema é quando tudo isso passa dos limites e se torna excessivo. Quando passa a atrapalhar nossa vida e daqueles que nos rodeiam. Quando somos alertados de que nosso comportamento está além da conta.
Porém, é preciso olhar com compaixão para a própria vida. É preciso entender o porquê daquela ansiedade, angústia, insegurança, apego, carência. É preciso desistir de nos cobrar comportamentos diferentes quando ainda não nos libertamos das causas daquele comportamento. Se fosse tão simples parar de comer, se fosse só dizer “vou parar de atacar a geladeira”, qualquer um conseguiria se submeter a regimes drásticos em pouco tempo. Se fosse tão fácil parar de limpar uma casa ou acumular coisas exaustivamente, não haveria transtornos como o TOC. Se fosse tão simples deixar de se apegar exageradamente a tudo e a todos, não haveria tantos livros de autoajuda ou métodos de relaxamento e meditação.
Vez ou outra estaremos nos excedendo em alguma coisa, e isso nem sempre é ruim. O empenho em sermos bons naquilo que amamos fazer, a dedicação àquilo que desejamos ver realizado, a persistência naquilo que buscamos, a energia que empenhamos para concretizar nossos planos, tudo isso é importante, necessário, fonte de vida. Porém, é preciso separar aquilo em que concentramos nossas energias para a realização de algo bom e aquilo em que gastamos nossa energia como uma fuga dos nossos problemas reais.
Excessos nem sempre são ruins. Mas alguns excessos são disfarces de faltas que assolam o nosso peito, e nem sempre temos a consciência disso. O menino que passou fome na infância pode desejar acumular mantimentos na vida adulta, sem se dar conta de que tenta suprir uma necessidade do passado, de um tempo que não existe mais. A moça que troca de parceiros repetidamente pode estar tentando lidar com o buraco da insegurança, depois de ser deixada pelo pai quando ainda era muito criança para entender. Muitas histórias podem ser contadas a partir de um comportamento excessivo, e desnudá-las requer um bocado de coragem.
Assim, é preciso aprender a olhar de outro jeito para as pessoas, com mais empatia e compaixão. Entender que aquele excesso que te incomoda tanto no outro – excesso de arrogância, excesso de exposição, excesso de intolerância – é um sinal claro de falta – falta de amor, atenção, segurança, coragem. E assim, aprender a desvendar a si mesmo também, fazendo a si próprio a derradeira pergunta: “que falta meu excesso esconde?”