Uncategorized

“Um sonho de liberdade”: a despersonalização do indivíduo pelo sistema prisional

Por Erick Morais

Rousseau certa feita disse que – “A liberdade pode ser conquistada, mas nunca recuperada”. As palavras do filósofo suíço podem soar forte, mas ao questionarmos situações em que há cerceamento de liberdade, podemos perceber o quanto ela faz sentido.

Ao perder a liberdade o indivíduo parece desconectar-se com a essência que o torna livre e, assim, retornar a situação em que se é livre pode ser extramente complexa, seja qual for a situação de falta de liberdade que o indivíduo se encontre.

Essa situação é retratada no filme “Um Sonho de Liberdade” (The Shawshank Redemption) do diretor Frank Darabont, em que um banqueiro é condenado à prisão perpétua após matar sua mulher e seu amante. Esse banqueiro é Andy Dufresne (Tim Robbins), sujeito meio tímido, meio calado, mas extremamente erudito. Com o seu jeito Andy vai aos poucos modificando o lugar, sobretudo, por ajudar Norton (Bob Gunton), o diretor da prisão, com as suas habilidades contábeis. O sujeito tímido também faz amigos na prisão, em especial, Red (Morgan Freeman), o qual é o narrador-filósofo da história.

Na prisão, vamos conhecendo cada personagem e percebemos a humanidade que os forma, de tal modo que rapidamente nos aproximamos deles, bem como, nos acostumamos com as grades e muros da prisão. Como diz Red em determinado momento – “A vida na prisão consiste em rotina e mais rotina” – e, assim, somos transportados para a prisão, como se estivéssemos ao lado de Andy e Red. Esse sentimento de pertencimento não se dá somente pela boa construção dos personagens e pela empatia que sentimos, mas também pelo modo realista que a prisão é retratada, cheia de muros, grades, guardas e escuridão.

Desse modo, a trama desde o inicio busca questionar o sistema prisional e o seu “modus operandi”. Ou seja, de que forma aquele sistema prisional vê os presos e como se busca a restauração dos delinquentes. Já inicialmente, percebemos a maneira que os presidiários são submetidos ao ridículo perante os demais e a violência que sofrem caso “perturbem” a ordem posta naquele local. Esses dois elementos são utilizados como forma de despersonalização e domesticação dos presidiários, a fim de que se acostumem com a prisão e se tornem institucionalizados, como bem observamos no cartão de visita dado pelo Capitão Hedley (Clancy Brown), ao ser indagado por um preso sobre o horário da comida.

“Vocês comem quando nós dissermos pra vocês comerem! Vocês mijam quando dissermos para vocês mijarem e vocês cagam quando dissermos para vocês cagarem. Entendeu, seu pedaço de merda?”

Sendo assim, o indivíduo rapidamente esquece quem é, o que o forma, o que lhe apraz, esquece a sua essência, o seu nome e se converte em um número. Não se trata de um discurso abolicionista em que o indivíduo que comete um crime não deve ser punido e ir para a prisão, mas sim de questionar o modelo prisional que é empregado e a quem ele interessa. O sistema prisional, tanto no filme quanto na vida, organiza-se tão somente pelo regime repressivo, em que o delinquente deve pagar pelo que fez, incluindo, a destituição de sua personalidade.

Não há qualquer compromisso com uma justiça restaurativa que busca reestruturar o delinquente, permitindo não apenas o seu retorno à vida em sociedade, mas também a si mesmo, de modo que possa se sentir como parte do todo e perceba que é importante para o corpo social. Esse modelo pode ser visto como utópico e, portanto, impossível de ser concretizado. Todavia, admitindo essa ideia, passamos a entender que o delinquente não é passível de ser recuperado e, assim, não há importância em qual modelo prisional ele cumpra pena, já que o fim será sempre o mesmo, qual seja, a sua não recuperação.

Ou seja, há um total descompromisso com a restauração dos presos e, assim, a frase proferida pelo diretor Norton ao ser indagado por Andy sobre a possibilidade de o Estado repassar verbas para o investimento na Biblioteca da prisão faz todo sentido.

“Para eles só existem três coisas a se investir em uma prisão: mais muros, mais grades e mais guardas.”

Dessa maneira, a liberdade vai sendo tolhida, até que seja esquecida e não somente pelo óbvio dos indivíduos estarem cumprindo pena, mas, acima de tudo, pela institucionalização que sofrem. A violência física deliberada a que são cometidos os domestica e a violência psicológica os despersonaliza, uma vez que, quando todos são tratados com um “pedaço de merda”, de que adianta o indivíduo possuir um nome ou coisas que possam “fazê-lo” sentir-se um homem?

“O nome dele não importa mais, está morto.”

Mais uma vez, não se trata de vitimizar o delinquente, mas, quando o indivíduo é visto como irrecuperável e merecedor de um tratamento desumano em todos os sentidos, invariavelmente já se torna uma vítima do sistema e, por conseguinte, incapaz de retomar a liberdade. Alguns são incapazes por se tornarem delinquentes piores e outros por esquecerem quem são. Uns por estarem ainda mais inaptos à vida em sociedade, outros por estarem inaptos a si mesmos.

Assim, não há justiça restaurativa, tampouco recuperação e os presídios são cada vez mais “escolas” do crime. Institucionalizado o presidiário se acostuma com o número que carrega e este se torna a sua vida, de modo que se esquece rapidamente que há lugares no mundo que não são feitos de pedras. A prisão se torna sua casa e de tanto ter as asas machucadas, quando livre já não consegue voar. Dentro da prisão, o indivíduo pode ser alguém importante, “Lá fora é só um ex-presidiário com artrite nas duas pernas”, incapaz de viver fora do ninho.

Devemos questionar a quem interessa um sistema prisional que não recupera de modo algum o delinquente, que se preocupa apenas em trancafiá-lo e submetê-lo a violências, mas que é incapaz de implementar cultura, educação, arte, a fim de que haja de fato uma restauração no indivíduo. No entanto, isso talvez seja utopia mesmo, já que em um mundo de prisões invisíveis a regra é estar preso, seja em uma prisão convencional, como Shawshank, seja aqui fora com os muros e grades que brotam a cada segundo. E, assim, o sistema prisional cumpre a sua função: automatiza seres humanos e os tornam incapazes de recuperar a liberdade como atentou Rousseau. Sinceramente, não é bem diferente do que vejo aqui fora.

Erick Morais Morais

http://genialmentelouco.blogspot.com.br/ "Poderia dizer o que faço, onde moro; mas, sinceramente, acho clichê. Meus textos falam muito mais sobre mim. O que posso dizer é que sou um cara simples. Talvez até demais. Um sonhador? Com certeza. Mais que isso. Um caso perdido de poesia ou apenas um menestrel caminhando pelas ruas solitárias da vida.

Recent Posts

A Influência do Natal na Música e nos Filmes Modernos

Uma tradição que vai além da religião O Natal une tradições religiosas, festas em família…

3 horas ago

Paisagens da Itália: Roteiro para Conhecer os Cenários Incríveis do País

Se está planejando uma viagem para conhecer as paisagens da Itália, este artigo é para…

4 horas ago

De Fotos a Apresentações Profissionais: Criando Histórias Visuais com Facilidade

Num mundo onde o conteúdo visual reina supremo, a capacidade de transformar imagens simples em…

3 dias ago

Filme romântico escondido no baú da Netflix vai melhorar seu dia no 1° minuto, sozinho ou acompanhado!

Nem sempre é fácil encontrar um filme que equilibre romance, humor e leveza sem cair…

7 dias ago

Você não vai acreditar quantos rostos dá para identificar nesta imagem – FAÇA O TESTE!

Imagens com ilusões de ótica sempre conseguem capturar a atenção de quem gosta de desafios…

7 dias ago

A Netflix vai estrear em dezembro um daqueles filmes originais que a gente não consegue parar de assistir

Em dezembro, a Netflix se prepara para apresentar mais uma produção original que promete mexer…

7 dias ago