Biografia de Sebastião Salgado: uma declaração de amor à vida, ao planeta e à própria mulher

Um homem chega aos 70 anos e olha para trás. Confere tudo aquilo que viveu. E então verifica: fez valer suas ideias, praticou seus ideais, trabalhou no que realmente quis, viajou pelo mundo inteiro, teve filhos, plantou árvores e, ao longo de todo esse tempo, viveu um grande amor. Uma espécie de síntese perfeita da vida que merece ser vivida.

Poucas são as pessoas que podem fazer um check-list tão realizador. E o que dizer de quem tenha vivido cada um desses itens plenamente? Um privilégio para raros seres humanos. Mas é o que se depreende ao fim da leitura de “Da minha terra à Terra” (Editora Paralela, 152 p.), livro de Sebastião Salgado em parceria com a jornalista Isabelle Francq, que conta a trajetória do fotógrafo brasileiro, um dos mais renomados do mundo e que tem como sua marca registrada os flagrantes singulares em preto e branco.

principalA leitura é fácil, daquelas indicadas para sala de aeroporto. Mas o conteúdo é denso, profundo. Propositadamente ou não, à exceção de uma dúzia de fotos no miolo do livro, não há mais qualquer imagem. Tudo o que se absorve vem por meio do relato simples e direto de Sebastião.
Mais do que uma simples coletânea de um depoimento ordenado de forma cronológica, o que realmente salta aos olhos com é o grau de humanismo que exala das palavras do fotógrafo. A prosa transcorre de forma tão natural que passa a sensação de que é, na verdade, um bate-papo com o leitor. Não deixa de ser, já que — idealista como é — Sebastião Salgado também usa a empatia para conseguir a adesão.

Contudo, o que mais fica claro em todo o relato é como, para obter sucesso pessoal e profissional, foi indispensável ao fotojornalista ter “a mulher certa”: a arquiteta Lélia Deluiz
Wanick, “minha esposa, minha companheira e minha sócia em tudo na vida” — como ele declara (e se declara). Se alguém quiser entender todo o livro como uma declaração de amor de Sebastião a Lélia não estará errado. Mesmo que sua figura seja entendida quase como uma eminência parda, percebe-se o alto poder e influência que ela tem no percurso do marido, desde seus estudos em Vitória, passando pela vida no exílio, na França, até o retorno ao Brasil e a ideia de promover o reflorestamento da Mata Atlântica na fazenda da família.

Na década de 90, após o casal voltar do exterior e encontrar lá, no interior de Minas, um cenário devastado: em vez de árvores portentosas, como as perobas da infância, uma paisagem de pastagem; em vez de montes verdes, erosões corroendo a vista outrora bela.

Nada de animais. Então, di­ante do cenário, Lélia vira-se para ele e diz: “Sebastião, vamos replantar.” O que parecia loucura virou floresta: até a publicação do livro, o Instituto Terra — fundado por eles para dar estofo à empreitada — havia plantado mais de 2 milhões de árvores. No horizonte, o projeto de chegar à marca de 50 milhões até 2050. Sebastião possivelmente não estará vivo, mas é assim que ele vê a vida: por gerações e não por indivíduos. A fazenda de Lélia e Sebastião virou reserva e hoje lá vivem até onças — o topo da cadeia alimentar. Sinal de ciclo completo, concretizado.

Fotografia de Sebastião Salgado

Curiosamente, até então tinha sido na pessoa o olhar de Sebastião durante toda a sua carreira de fotógrafo renomado. Foi assim em “Outras Américas”, em “Trabalhadores” e em “Êxodos”, obras superpremiadas mundo afora e em que, visitando tribos da Amazônia, acompanhando bombeiros ensopados de óleo em luta contra as chamas infindas em poços de petróleo no Kuwait ou vendo corpos caírem intermitentemente de uma cachoeira na África, ele maravilhou o mundo com exposições do melhor e do pior do ser humano.

Seguir os refugiados em suas rotas de desespero, em “Êxodos”, foi um duro golpe até mesmo para tão experimentado fotógrafo: via no homem a “espécie tão cruel consigo mesma”. Ficou mal “física e psiquicamente”. Sobre seu encontro face a face com a morte tantas vezes exposto em suas fotos-denúncias, ele diz: “Minhas fotos foram tiradas porque pensei que o mundo inteiro devia saber. É meu ponto de vista, mas não obrigo ninguém a vê-las. Meu objetivo não é dar uma lição a ninguém nem tranquilizar minha consciência por ter despertado algum sentimento de compaixão em outrem. Fiz essas imagens porque eu tinha uma obrigação moral, ética, de fazê-las. Alguns me perguntarão: em tais momentos de desespero, o que é a moral, o que é a ética? No momento em que estou diante de alguém que está morrendo é quando decido ou não se tiro a foto.”

Depois disso, Sebastião, que se vê como cético em relação à crença em um ser superior, se viu descrente também do próprio homem. Foi quando o amor o salvou — Lélia e a ideia de reflorestar seu “quintal”. Bem antes disso, o economista Sebastião Salgado havia largado a carreira confortável e promissora de executivo na Organização Internacional do Café ao se apaixonar pela máquina fotográfica comprada para um trabalho da então estudante de arquitetura. Lélia, sem saber, naquele dia o encaminhou para seu propósito de vida.

Mas não foi ao acaso que surgiu “Gênesis”. O trabalho foi uma forma de fazer o encontro das próprias origens com as origens do mundo. E um dado interessante apareceu para Sebastião Salgado ao se abrir à ideia de fotografar não mais o homem e suas realizações positivas e negativas, mas a natureza: praticamente metade (46%) da superfície terrestre ainda permanece intocada.

A visão do primitivo — nas Ilhas Galápagos, na Sibéria, nas tribos amazônicas (como a dos zo’és, que desconhecem a mentira) — o fez entender que, na realidade, o homem urbano vive em outro planeta. “Na verdade, estamos abandonando nosso planeta, pois a cidade é outro planeta. (…) Erguemos barreiras entre a natureza e nós. Com isso, nos tornamos incapazes de ver, de sentir.”

Uma vida fantástica, que não seria exagero chamar de heroica. Uma história que daria um filme. E deu. Em “O Sal da Terra” (2014), a vida de Sebastião Salgado é contada por intermédio de Wim Wenders. O cineasta alemão se juntou ao projeto do documentário idealizado por Juliano Salgado, filho do fotógrafo, e cuja prova irrefutável de aceitação foi ter sido aplaudido de pé por cinco minutos ao final de sua única sessão no Festival de Cannes do ano passado.

A história de Sebastião Salgado, vista de perto, é muito mais ampla do que a de um fotógrafo engajado e com ideias de esquerda. De fato, Salgado não nega sua formação marxista. Foi por ela que teve de abandonar o Brasil, envolvido que estava com o Partido Comunista e movimentos tido como subversivos. Na realidade, não é justo nem vê-lo apenas como um fotógrafo. Esse é o ponto referencial, obviamente, mas sua trajetória vai além. Coisas que o amor produz quando se faz parceiro na vida.

Elder Dias

Jornalista, sonhador, humanista, desenhista e pintor de suas próprias utopias. É de Goiânia - Goiás.

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