Por Vinicius Siqueira do site Colunas Tortas
“Se o “espírito” era “moderno”, ele o era na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emancipada da “mão morta” de sua própria história – e isso só poderia ser feito derretendo os sólidos (isto é, por definição, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso à sua passagem ou imune a seu fluxo)”.
Em Bauman, a metáfora que traduz a modernidade e suas relações líquidas é a da fluidez. Em comparação com os sólidos, os líquidos e gases são flexíveis, leves; a fluidez é sua característica particular, é o que lhes distingue do corpo bruto, da solidez: sempre que atingidos por uma força tangencial sofrem uma constante mudança de forma. Os fluidos, portanto, não mantém sua forma com facilidade e, de certa forma
“Não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la.[1]
Em relação ao tempo, os sólidos são praticamente indiferentes. Não é necessário dar atenção à passagem do tempo para explicar um sólido, mas para descrever um líquido o tempo passa a ser ingrediente essencial, já que sua forma é móvel e cada arranjo espacial tem a duração de um momento. É neste sentido que a leveza do líquido é associada com a velocidade: vencer o espaço ao longo do tempo é uma característica óbvia da liquidez, da inconstância em relação ao mundo físico.
Tempo disperso, espaço irrelevante, velocidade: essas são características que Zygmunt Bauman coloca como marcas da história da modernidade e a metáfora da fluidez é perfeita para seus objetivos. O sociólogo sabe que tais considerações soam estranhas para aqueles que já estão acostumados com a narrativa utilizada normalmente para descrever a história moderna.
No entanto, não seria a modernidade fluida desde seu início? Não foi seu objetivo “derreter os sólidos” e colocar à prova da realidade toda e qualquer tradição e crença?
Se o “espírito” era “moderno”, ele o era na medida em que estava determinado que a realidade deveria ser emancipada da “mão morta” de sua própria história – e isso só poderia ser feito derretendo os sólidos (isto é, por definição, dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso à sua passagem ou imune a seu fluxo).[2]
Toda e qualquer armadura de proteção colocada no passado deveria ser destruída e o sagrado, profanado. Mas não nos enganemos, pois os sólidos destruídos pela modernidade seriam substituídos por outros: o plano era trocar os defeituosos por um conjunto aperfeiçoado e talvez perfeito, para nunca mais ser trocado.
Os primeiros sólidos a se derreter, diz Bauman, eram “as lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam as iniciativas”[3]. Era necessário desassociar a empresa de negócios das obrigações familiares ou dos deveres éticos que as associações profissionais desempenhavam, para assim, dar livre fluxo ao cálculo racional dos efeitos, segundo Weber. Sem a ética e as obrigações para com o lar e o núcleo familiar, a empresa ficava somente com o “nexo dinheiro”, nas palavras de Thomas Carlyle, e as relações sociais perdiam sua gama plural de referências para caírem às regras e critérios racionais e inspirados em negócios.
Esse desvio fatal deixou o campo aberto para a invasão e dominação (como dizia Weber) da racionalidade instrumental, ou (na formulação de Karl Marx) para o papel determinante da economia: agora a “base” da vida social outorgava a todos os outros domínios o estatuto de “superestrutura” – isto é, um artefato da “base”, cuja única função era auxiliar sua operação suave e contínua.[4]
A contínua libertação da economia em relação aos laços com a esfera política, ética ou cultural deu base para uma nova ordem social que se constitui principalmente por termos econômicos. Esta ordem é reproduzida incessantemente, de maneira que a capacidade reflexiva de se pensar suas normas acaba sendo suprimida e sua rigidez se torna o “artefato e o sedimento da liberdade dos agentes humanos”[5]. Ironicamente, a rigidez da ordem é resultado da flexibilização, privatização, liberalização crescentes e descontrole dos mercados financeiro, imobiliário e do trabalho. Além disso, há o aspecto das relações líquidas entre sujeitos: as técnicas de “velocidade, fuga, passividade” são maneiras que permitem o desengajamento constante entre os agentes e o sistema, já que em vez de se encontrarem e se organizarem, eles são inseridos em posições que exigem o desenlace.
Como o poder já não é exercido a partir de centros de controle fixos, já não é possível imaginar uma mudança social radical, já que não se sabe ao certo onde se encontra a maquinaria central. Revolucionar a sociedade deixou de ser uma tarefa da agenda política hegemônica. Bauman afirma que o traço permanecente da modernidade de derretimento dos sólidos foi estendido até as forças que poderiam colocar o sistema em pauta na agenda política, ou seja, o que está sendo derretido agora são as ligações entre os projetos individuais de vida e as ações coletivas.
A modernidade como um todo está tendo sua força de derretimento realocada e distribuída, de maneira que a família, por exemplo, se tornou uma categoria zumbi, sem relevância, sem estabilidade, sem referência na vida dos familiares. Todos os padrões de relacionamento que pressupõe dependência foram colocados na malha do derretimento: aos poucos, vão sendo esfacelados pelo martelo moderno. O resultado da falta de referências é a impossibilidade de se guiar seguramente ao longo da vida: sem pontos de orientação seguros, passa a ser tarefa individual encontrar um caminho para seguir e arcar com a possibilidade do fracasso.2
É claro que isso não significa que a liquefação das relações leva a liberdade para os agentes sociais, como se fossem capazes de construir suas vidas a partir do zero e sem interferência externa durante a trajetória da vida. As pessoas ainda são dependentes da sociedade para obter comida e materiais de construção, por exemplo, mas o que mudou foi a experiência do agente dentro da sociedade, já que ele deixou de ter grupos de referência e passou a viver numa esfera de comparação universal, em que a responsabilidade de autoconstrução, de criação de si, está sempre subdeterminada e tem como único fim real a morte do indivíduo.
Como não há mais padrões e ordens dadas, somos os únicos responsáveis por traçar todo caminho e decidir todos as ações que iremos fazer durante a vida. Vive-se a modernidade privatizada e individualizada. Por sua vez, a modernidade começa com a separação (na experiência cotidiana) do tempo e do espaço. Diferente das épocas pré-modernas, em que ambos eram entrelaçados por redes densas na experiência vivida, a modernidade traz a teorização mutuamente independente de cada um, deixando com o tempo a história, ou seja, sua capacidade de carregar experiências e permanecer em expansão, em eterna conquista.
O tempo adquire história uma vez que a velocidade do movimento através do espaço (diferentemente do espaço eminentemente inflexível, que não pode ser esticado e que não encolhe) se torna uma questão do engenho, da imaginação e da capacidade humanas.[6]
Ao mesmo tempo, a velocidade só pode ser pensada através da variação prática do espaço no tempo, portanto, do deslocamento possível através de tecnologias que estão além da perna humana ou equina.
O tempo, assim, deixou de se manter em uma relação dialética com o espaço, de ser o polo de ataque, de movimento, de conquista, enquanto o espaço era o polo de defesa, da guerra de trincheiras e de fixidez. A mais nova arma na conquista do espaço passou a ser o tempo e a velocidade de movimento, acesso a meios mais rápidos de mobilidade e comunicação, passaram a ser ferramentas de exercício do poder e da dominação.
Armas essas que entram em confronto com a visão paradigmática do exercício do poder proposta por Michel Foucault em Vigiar e Punir. O projeto do Panóptico, concebido por Jeremy Bentham, era sua metáfora do poder na modernidade. Ali, os detentos eram presos em celas totalmente vigiadas, isolados um dos outros e colocados sob um controle que não se mostrava a eles. Os vigias, no projeto de Bentham, não precisavam de fato estar em seus postos para que o olhar da vigilância estivesse presente: este olhar era inscrito no indivíduo isolado. A oposição entre os vigias e os detentos era a oposição entre movimentação e fixidez, entre tempo e espaço, pois os vigias podiam se locomover livremente pelas instalações do Panóptico enquanto cada preso era destinado às rotinas impostas e aos espaços fixados pela arquitetura do projeto.
O Panóptico era um modelo de engajamento e confrontação mútuos entre os dois lados da relação de poder. As estratégias dos administradores, mantendo sua própria volatilidade e rotinizando o fluxo do tempo de seus subordinados, se tornavam uma só. Mas havia tensão entre as duas tarefas. A segunda tarefa punha limites à primeira – prendia os “rotinizadores” ao lugar dentro do qual os objetos da rotinização do tempo estavam confinados. Os rotinizadores não eram verdadeira e inteiramente livres para se mover: a opção “ausente” estava fora de questão em termos práticos.[7]
Ou seja, a presença física de algum guarda ainda era necessária para o controle do movimento dos subordinados. Além disso, o Panóptico é caro, precisa de grandes espaços e de manutenção, também precisa de reparo de equipamento internos de vigilância, profissionais para se contratar e remunerar, custos com o básico para manter os internos produtivos, pior: é necessário garantir um bem-estar no local, uma harmonia – é necessário se responsabilizar pela vida de quem é internado. Essa responsabilidade fixa sujeitos, “ela requer presença, e engajamento, pelo menos como uma confrontação e um cabo-de-guerra permanentes”[8].
Já na dita pós-modernidade, afirma Bauman, o poder não precisa mais se fixar em um local geográfico específico, pois pode ser exercido à distância, com a velocidade de um sinal eletrônico. A movimentação que o poder exige pode ser feita instantaneamente e ele se torna, por sua vez, extraterritorial. O espaço deixa de ser uma resistência e o Panóptico perde parte de suas consequências irritantes (a presença, a necessidade do engajamento, os custos de vida), já a modernidade no estágio presente, diz o autor, já pode ser definida como pós-Panóptica: é possível (e melhor) que a ordem seja cumprida fora do alcance de sua visibilidade, de forma que os operadores do poder possam se inclinar para a pura inacessibilidade.
Bauman fornece como exemplos as guerras do Golfo e da Iugoslávia, onde havia relutância em utilizar tropas terrestres não só pelo trauma do recolhimento dos corpos que as guerras passadas já haviam instalado nos sujeitos, mas também porque não fazia mais sentido: era caro, contra produtivo, não atendia aos objetivos de guerra, que já não eram expulsar o inimigo de seu território, seja pela fuga ou pela morte, mas sim atacar estrategicamente pontos específicos que acabariam com qualquer iniciativa inimiga no campo de batalha.
A força militar e seu plano de guerra de “atingir e correr” prefigura, incorpora e pressagia o que de fato está em jogo no novo tipo de guerra na era da modernidade líquida: não a conquista de novo território, mas a destruição das muralhas que impediam o fluxo dos novos e fluidos poderes globais; expulsar da cabeça do inimigo o desejo de formular sua própria regras, abrindo assim o até então inacessível defendido e protegido espaço para a operação dos outros ramos, não-militares, do poder.[9]
E o sociólogo termina parafraseando Clausewitz, pois a guerra se torna uma “promoção do livre comércio por outros meios”.
Por sua vez, com a formação do Estado moderno e a inserção de suas fronteiras rígidas que coincidiriam com as fronteiras da nação, os povos nômades, como ciganos, foram alocados para os objetivos da força de construção da ordem como inimigos. Qual a relação disso com a nova estratégia de guerra e com o pós-Panoptismo? Com o derretimento das fronteiras de mercado entre os países, o nômade da modernidade líquida passa a ser o dominante, não mais o perseguido. No entanto, é necessário ter cuidado aqui, Bauman diz que o dominante é a elite nômade e extraterritorial, capitalistas que podem frequentar qualquer lugar do mundo e, sem local fixo, manter seu controle sobre o capital. A referência física “do” capitalista se perde num fluxo de capital incessante e não há mais como apontar o dedo para um sujeito.
Os nômades pré-modernos, considerados sujos, subdesenvolvidos, sem cultura, atrasados, agora são as populações pobres que não podem se mover, que não têm dinheiro para utilizar da velocidade como arma de conquista do espaço ao longo do tempo.
Não mais orgulhoso de seu trabalho, o novo grupo nômade não se interessa pela obra, pela construção do império. Como não são mais a causa última ou referência nos movimentos que o mercado tem, não há mais nenhum remorso em descartar um negócio que não está indo bem ou, como as leis trabalhistas são, de pouco em pouco, eliminadas pela realização do livre fluxo do capital, demitir centenas de pessoas.
O durável, fixo, eterno, que sempre foi o desejo dos poderosos, é invertido. Os novos poderosos querem algo descartável, que possa ser expurgado sem grandes problemas e que não os responsabilizem pelo despejo. A distopia da instituição de relações líquidas é a miséria em forma de liberdade.
Referências
[1] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 8.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida… p. 9.
[3] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida… p. 10.
[4] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida… p. 11.
[5] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida… p. 11.
[6] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida… p. 16.
[7] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida… p. 17.
[8] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida… p. 17.
[9] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida… p. 19.
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