Razões para acreditar, por João Marcos Buch

Tenho estado cansado. Andam roubando nossos maiores desejos, nossos maiores anseios, fazendo-nos trair a utopia. Particularmente, atuando em uma vara de execução penal, em alguns momentos, especialmente no fluir dos últimos dois anos, perdi a crença de que a sociedade justa e solidária pela qual lutamos desde a reabertura democrática será recuperada. Essa perda de fé é algo que não recomendo a ninguém, muito menos a quem pauta sua conduta na ética e na alteridade, tampouco a um juiz humanista.

Mas, acabo refletindo melhor com meus botões e me pergunto: “Quem sou eu para andar cansado? Preciso olhar mais ao meu redor, há pessoas lutando pela própria vida. Não é questão de fé e sim de fazer o que é certo”.

Portanto, como recomeçar não é característica de quem está feliz, sem ter o direito de me cansar, neste momento e neste texto recomeçarei outra vez, mostrando que o certo e o bom existem e que há razões para acreditar.
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Busco na memória exemplos, que logo chegam.

Vem-me a imagem de uma cartinha que recebi, faz uns 7 anos, mais ou menos. Nela, um menino dizia que tinha estado em meu gabinete com a avó, a qual pedia pela filha, sua mãe, apenada e internada no hospital em estado grave. Falou que depois de um tempo a mãe foi para casa, por minha autorização, quando então passaram o Natal juntos, brincaram na praia, tiveram dias felizes… até que ela morreu. O menino agradecia pelo tempo que compartilhou com a mãe. Respondi e disse saber que ele cresceria com um sólido caminho pela frente e se tornaria um homem digno. Tenho acompanhado sua vida, de longe. É um rapaz cheio de energia, que deu uma parada nos estudos para procurar trabalho, mas que garante que está tudo bem e eu sei que está.

Também lembro de um caso muito emblemático de um detento que, em uma audiência de justificação de falta grave, disse que a mulher estava grávida e que se antes ele era o filho, agora seria o pai, precisando de uma chance para poder olhar para a criança que nasceria dentro em pouco. Permiti que ele fosse passar sete dias em casa. Ao final do sétimo dia, antes de se dirigir para a penitenciária, o rapaz compareceu em meu gabinete e contou que durante aqueles dias a mulher tinha entrado em trabalho de parto e, como o SAMU havia demorado para chegar, ele é que ajudou o filho a nascer. Estava radiante, orgulhoso, feliz. Tempos depois, deferi seu regime aberto e ele foi definitivamente para casa. De quando em vez recebo boas notícias da família pelas redes sociais.

Mais recentemente, ao sair do Fórum para almoçar, fui parado por um outro rapaz, também apenado, em monitoramento eletrônico, que, afoito, mostrava-me a carteira de trabalho, onde constava a contratação em uma empresa tradicional da cidade. Ele pedia para saber quando tiraria a tornozeleira, pois não tinha certeza se o aceitariam em definitivo no emprego caso com ela permanecesse. Eu lhe esclareci que não era para se preocupar, que a empresa era idônea e sem preconceitos, mas que mesmo assim analisaria o caso e veria o que poderia ser feito. Efetivamente, como ele alcançara o tempo necessário, sempre se mostrando responsável, progrediu de regime e pôde tirar o artefato. O jovem segue empregado na mesma empresa, como eletricista.

Para finalizar nos exemplos, há um par de dias recebi privadamente no meu Instagram a foto de um casal. O homem segurava no colo uma menininha lindamente vestida, a mulher olhava ternamente para os dois, todos atrás de uma mesa cuidadosamente arrumada e com um apetitoso bolo sobre o qual brilhava uma velinha de um ano. Com a foto, seguia uma mensagem escrita pela mulher, em que agradecia o fato do marido, apenado, poder ter passado o aniversário de um ano da filha em casa. Aquela imagem, que resplendia felicidade, foi um presente para mim.

Esses casos, eu sei, não são frequentes. Além disso, não podem ser usados pelo discurso da meritocracia, de que “basta querer que consegue”. Está muito claro que no Brasil, país racista, patriarcal e colonizado, as oportunidades só sorriem para uma pequena casta, o restante fica à espera da sorte de estar no lugar certo, na hora certa, quando a rara oportunidade aparece.

Mas isso não significa que devamos nos render a esse destino, porque não vamos! O interacionismo simbólico nos ensinou há décadas que não somos amados porque somos bons, somos bons porque somos amados.

Há bondade nas pessoas, ela só precisa ser despertada.

E quando falo “nas pessoas”, não me refiro aos presos e suas famílias, trato da sociedade em geral, que muitas vezes não compreende o fenômeno da violência e a origem da desordem coletiva, deixando-se levar pelo ódio, hoje tão forte em algumas autoridades. É a essas pessoas que o amor, além do conhecimento, precisa tocar, indistintamente.

O importante é que esse toque já aconteceu para boa parte. Vejo muitos trabalhando filantropicamente no fornecimento de comida àqueles que têm fome; vejo profissionais da saúde estendendo a mão e conferindo carinho àqueles que estão prestes a partir; vejo atores jurídicos desempenhando voluntariamente trabalhos incríveis na defesa dos direitos e garantias fundamentais; vejo padres Júlio Lancellotti por todos os lados, com seus bálsamos de fraternidade sendo despejados naqueles em situação de rua.

São esses exemplos, juntamente com aqueles que retratei acima, que devem nos prover de energia e nos fazer levantar toda manhã, carregando no olhar os sonhos de justiça e liberdade, carregando os sonhos humanos.

Há razões para acreditar.

João Marcos Buch é Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville e escritor.

Imagem de Rudy and Peter Skitterians por Pixabay 

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Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville/SC