Texto da Revista Justificando
“Somos taxados como lixo da sociedade. Eu não quero morrer aqui.”
“Não tenho condições de pagar um advogado para ver meu caso. Peço para o senhor me ajudar.”
“Preciso de transferência para a Penitenciária pois me encontro muito doente. Tenho que operar. O presídio não tem condições. Já perdi consultas.”
“Preciso saber como está minha mãe, pois ela estava vindo me visitar e parou. Estou muito preocupado com ela.”
“Gostaria muita de pagar essa cadeia na Penitenciária pois lá poderia trabalhar para ajudar minha esposa e dois filhos que estão na rua e dependem de mim. Respeitosamente.”
“Preciso de segurança. Já tentaram me matar. Espero que o senhor veja esse meu pedido da melhor forma, tá! Obrigado por tudo e que Deus abençoe a vida do senhor.”
“Fiz muitas coisas erradas na rua, quero sair desse lugar e gostaria de uma clínica de recuperação de drogas. Peço por favor para me tirar desse lugar. Agradeço o senhor juiz por me ajudar.”
“Meu pai sofreu um derrame e ele não está em boas condições de trabalho. Ele precisa de minha ajuda. E ainda tem minhas filhas que são quatro meninas maravilhosas que estão passando necessidade. Preciso que você senhor Marcos Buch olhe para meu caso, pois estou longe de minha filhas e elas longe do pai.”
“Sou portador de HIV e preciso urgente fazer meu tratamento em casa e ajudar minha mãe e minha filha. Estou sofrendo muito.”
“Senhor Juiz Marcos Buch, fui preso em flagrante, num 55 e não deixei de assinar. Peço uma ajuda. Não assumi na delegacia mais para o senhor assumo que fui eu senhor juiz. Sei que o senhor é correto e todos respeitam o senhor porque é o melhor juiz que já vi. Bom serviço a todos.”
Essas frases eu tirei de pedidos feitos por detentos cuja pena eu como juiz executo. Já fazia uma semana que eu tinha estado no Presídio. Lá, como sempre, conversara com o diretor sobre a situação da unidade, bem como com os agentes penitenciários, que me repassaram novamente as dificuldades da função, em sua maioria resultantes da carência de recursos humanos e de ruins instalações para trabalhar.
Em seguida, adentrei num dos pavilhões, daqueles mais antigos, quadrados, com um pátio central separado das celas por corredores gradeados. Como toda construção antiga que não é reformada, as paredes estavam em rebocos, a fiação exposta, o chão de laje batida úmido.
O cheiro de água sanitária era forte.
Assim que anunciada a minha presença, entrei pelos corredores e vi de um lado, no pátio, cerca de 30 detentos tomando sol (estava nublado e sol é modo de dizer) e de outro nas celas mais cerca de 70. Era o clássico presídio brasileiro, superlotado, sem saneamento, sem fornecimento de vestuário, sem atividades como trabalho ou estudo, uma violação absoluta da lei de execução penal e, pior, da Constituição e dos Direitos Humanos.
Mesmo depois de anos andando por esses mausoléus país afora, continuo sentindo o impacto desse chão da prisão, cruel para que tem olhos de ver, e que denomino propositadamente e sem leviandade de navios negreiros do século XXI; desse chão da prisão que serve ao extermínio de jovens, ceifados que foram de seu direito de crescer com educação e saúde, lançados na vala de vulnerabilidade social e econômica, sem referências sólidas numa sociedade líquida. Sob esse impacto cumprimentei a todos. Pedi silêncio e assim que reconhecido fui logo atendido.
Expliquei o motivo de minha estada no local. Queria ouvi-los mais uma vez sobre a situação do presídio, sobre dúvidas processuais e penais, sobre questões de visitas, transferências para a Penitenciária ao lado, onde há trabalho e estudo sem superlotação, sobre a vida na prisão. Distribuí formulários simples para preencher e entreguei canetas, mostrando como e onde deveriam escrever. Disse que aguardaria algum tempo no Presídio e logo pediria a um emissário que voltasse para buscar os formulários para que então eu os levasse comigo para o Fórum e tratasse deles nos respectivos processos. Assim fiz.
“Não aguento mais ficar sem ter o que fazer, estou enlouquecendo, queria trabalhar e estudar” – carta de um dos presos.
Exausto cheguei no gabinete e orientei que os formulários foram deixados na minha mesa após anotação pela assessoria do número do processo a que se referiam. Passei a trabalhar com o volume normal de processos que me chegavam para decidir. E assim os dias se passaram sem que eu conseguisse encostar na pilha dos formulários, que ali estava, a minha frente, na mesa, olhando para mim. Sabia que tinha que trabalhar com ela, mas as urgências da Vara eram tantas! E a pilha ali, olhando para mim. Finalmente, no final de um dia de expediente menos tumultuado, já início de noite, consegui devolver o olhar e apanhei a pilha. Nela encontrei os pedidos que por amostragem acima colei, respeitando dados e anotações privadas e corrigindo mecanicamente boa parte da gramática.
Atualmente, existem quase 700.000 presos no Brasil (quarta maior população carcerária mundial) para cerca de pouco mais de metade de vagas. Detentos sem colchão para dormir, sem kit-higiene, sem trabalho, sem estudo, coisificados. O sistema está falido e essa falência violenta especialmente a dignidade humana. De outro lado, não há verba para abrir vagas suficientes nas unidades prisionais ou incrementar os recursos humanos. É preciso construir escolas, hospitais, habitação.
O caminho, portanto, é diminuir o encarceramento, para isso estruturando e propiciando condições para uso maior das alternativas penais, que evitem a privação da liberdade e que inclusive substituam as prisões provisórias – vide audiências de custódia. Está na hora de evoluirmos em nossa civilidade, porque da forma como a vida tem se mostrado temos é retrocedido. O abismo está olhando para nós. A humanidade necessita viver e sobreviver. Isso não é uma opção, é um imperativo.
João Marcos Buch é Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville e escritor.
Recomendação da Revista Pazes:
O autor deste texto publicou diversos livros de cunho altamente humanista. Clique na imagem abaixo para conhecer esses livros.
Foto de capa: Luis de Silveira – CNJ