Por Juliana Santin
Esses dias, estava pensando sobre como algumas atitudes que tomamos soam como um ato de transgressão e sobre como isso diz respeito a seguir valores internos e não externos. Eu sempre brinquei que usar meu cabelo naturalmente cacheado era um ato de transgressão. Parece que as pessoas olham para você e perguntam: como você ousa libertar-se dessa “corrente invisível” que dita que as mulheres só podem ser felizes e realizadas se tiverem o cabelo liso e sedoso? Como você ousa sair de cabelos molhados e ser feliz mesmo assim?
Tenho a sensação de que existe uma “tabela de referência” sobre o que é ou não uma vida bem sucedida, uma pessoa bonita, uma vida interessante, uma pessoa atraente, à qual a maioria esmagadora das pessoas está acorrentada. Quanto mais enquadrado você for dentro da tabela, mais feliz você é, na teoria. Isso gera uma corrida louca para se encaixar nesses valores e, é claro, uma dose cavalar de frustração. Como pode haver uma tabela única de referência que valha para todas as pessoas?
O fato de nos agarrarmos às referências da maioria nos gera certa segurança. Afinal, se todo mundo faz, eu não estou sozinho. Não preciso decidir muita coisa e corro poucos riscos. Ninguém vai questionar um comportamento padrão. Ou alguém já ouviu a pergunta: “Nossa, por que você dirige seu carro?”. Agora, imagine quantas vezes eu já ouvi a pergunta oposta: “Nossa, você não dirige? Por que?”. O problema é que segurança tem pouco a ver com liberdade. Estar seguro, muitas vezes, significa estar acorrentado.
Então, torna-se um ato de forte transgressão simplesmente desacorrentar-se dessa tabela e, veja só, ser a gente mesmo! Luiz Felipe Pondé falou uma vez, com toda a ironia que lhe é peculiar, que não tem nada mais insuportável do que gente livre. A pessoa que se livra das correntes é uma afronta, é uma prova de que, sim, é possível libertar-se e, pasmem, ser feliz! Quando a cantora Adele estourou e surgiu todo aquele bafafá por ela ser gorda, as pessoas pareciam dizer: como ela ousa ser gorda e talentosa? Ela não aprendeu desde pequena que somente pessoas que estão dentro do padrão têm permissão para serem bem sucedidas? Como ela quebra uma regra assim, na cara dura, e se dá bem?
Recentemente, também, fui a um show da cantora Maria Rita que, após ter passado por um período em que estava bem magra, exibindo a barriga para lá e para cá, está mais redondinha novamente. O comentário das pessoas não variou muito: “ela está gordinha, né?” E ela estava simplesmente linda, porque estava muito à vontade em seu próprio corpo. Não estava usando roupas largas para esconder as gordurinhas ou de alguma maneira intimidada por seu corpo fora do padrão. Ela exalava aquele ar de transgressão, de quem diz: eu sou assim e gosto de ser assim. Lidem com isso. Aquele ar de quem já cortou as correntes faz tempo.
É claro que não é fácil, não é nada fácil. Nós somos treinados desde pequenos a nos enquadrar. Mas ao percebermos que ser aquilo que realmente somos, com autenticidade, nos liberta das correntes, paramos de depender da aprovação dos outros e aceitamos que as pessoas são diferentes e que não há absolutamente nenhuma versão de nós mesmos melhor do que, bem, nós mesmos! Então, podem existir milhares de pessoas melhores que eu em diversos quesitos, mas não há ninguém que seja melhor “eu” do que eu mesma. Então, se você quer ser o melhor que pode ser, seja você mesmo! Porque você nunca será o melhor “outro”. Nunca.
Eu tenho um amigo muito querido, por quem tenho uma profunda admiração. Só que esse meu amigo não sente por ele a mesma admiração que eu sinto. Isso porque ele está usando a tabela de referência errada. Ele acha, por exemplo, que existe um número de características físicas que tornam um homem atraente. Como ele, em alguns quesitos, não se encaixa nessas características e nunca se encaixará, dá a ele uma nota baixa. O problema aqui é o gabarito, que está errado! Ele está comparando banana com maçã. Ele está comparando ele com um padrão que é não-ele.
Ah, mas isso é pura balela! As mulheres querem homens dentro do padrão e não vão dar bola para um sujeito fora do padrão. Assim, de duas, uma: ou ele se encaixa no padrão ou, se isso for impossível, será eternamente infeliz e solitário. Certo? Errado! Claro, há mulheres – e talvez seja, mesmo, a maioria – que usam a tabela de referência padrão e eliminam aqueles que estão fora. No entanto, essas também estão acorrentadas e gente acorrentada não é capaz de amar genuinamente. O amor exige liberdade. Liberdade, inclusive, de sermos nós mesmos.
De que adianta uma pessoa gostar da outra somente se ela não for ela mesma? Eu gosto de você, mas… você precisa mudar isso ou aquilo, para se tornar a pessoa que desejo. Péssima estratégia. No caso do meu amigo, se a maioria das mulheres ama um ideal padronizado de homens, o melhor mesmo é que elas fiquem longe dele! Ele sendo o melhor ele mesmo que é possível ser, será um ser único e deve relacionar-se com aquelas pessoas que apreciam quem ele realmente é. Se houver pessoas que não apreciam – e certamente há, muitas -, está tudo bem. Não é necessário agradar a todos.
Eu mesma já me peguei questionando: será que sou muito esquisita? Será que alguém vai mesmo ter paciência de conversar comigo sobre, por exemplo, Beethoven? Será que eu não seria mais interessante se falasse de, sei lá, Valesca Popozuda e seu beijinho no ombro? Mas, veja só, eu realmente gosto de Beethoven. Sua música é para mim como um travesseiro muito macio e confortável envolvendo meu coração. Eu ouço Beethoven porque sua música mexe comigo de verdade. Não é uma fachada somente para dar uma de erudita. É um gosto real. Então, essa sou eu. Tem gente que não gosta? Certamente, muita gente, mas está tudo bem. Sejam todos livres para estar acompanhados daqueles que apreciam genuinamente.
“Pra mim está claro que a arte cada vez mais exige marca, exige personalidade e que, para você ter personalidade, ela exige coragem. Que você se respeite como você é, que você goste das suas idiossincrasias, que você não tenha vontade de se adaptar. Que o que você sente muito forte, de alguma maneira deve estar certo”, disse o cantor e compositor Oswaldo Montenegro em uma entrevista. Se pensarmos em nossa vida como a nossa própria obra de arte, como sugeriu Nietzsche, essas palavras encaixam-se perfeitamente.
Quando fazemos as coisas com autenticidade e dedicação, quando colocamos nossa marca genuína, quando conseguimos transgredir todas as regras e ser a gente mesmo, conseguimos nos libertar das correntes. Passamos a nos comparar com a nossa própria tabela e, aí sim, a trabalhar para melhorar, sempre. Mas sempre usando a tabela de referência “eu mesmo” e não “todo mundo”.