Por João Marcos Buch
Neste momento estou em casa, são 22h, a noite está um pouco abafada e há um vento quente soprando que prenuncia tempestade. Terminadas as atividades cotidianas, no conforto do sofá de minha sala, começo a refletir sobre meu trabalho. Os tempos estão difíceis para pessoas idealistas, que sonham, que acreditam. Não é só a tempestade da natureza que se aproxima. Sinto um cansaço, um abatimento, aliado a uma sensação de angústia. Posso fazer mais? Posso lutar mais? Sei que o trabalho na execução penal não permite titubeios, há que se arregaçar as mangas e agir, porque vidas de pessoas existem e resistem a depender desse trabalho. Ademais, quando as causas humanas são objeto de ataques e ofensas, é preciso responder, responder sem ódios, responder com razões e afetos. Então resolvo escrever sobre meu dia. Quem sabe com isso acalmo o pássaro azul que assim como em Bukowski também vive em meu peito.
Hoje, logo cedo, ao sair da padaria onde tomei um rápido café, uma senhora me aguardava na calçada. Ela tinha miúda estatura, em sintonia com um rosto cândido. Educadamente a mulher me parou e, pedindo para falar comigo, relatou que o filho estava na prisão. O rapaz fazia uns três anos havia se envolvido com drogas e respondia ao processo em liberdade. Agora, apesar de nunca mais ter se envolvido em problemas, trabalhando e começando a cursar uma faculdade, foi preso pela polícia na porta de casa, algemado e levado para a prisão. Perguntei à mulher o que ela efetivamente desejava de mim. Abrindo a bolsa, ela respondeu que gostaria de me entregar uma carta do filho, pois tinha o visitado dias antes. Suas mãos tremiam. Eu aceitei receber, alertando que aquele não era o caminho de praxe e que o certo teria sido me procurar no Fórum. Ela falou que essa era a intenção, mas que tendo me visto na padaria aproveitou a oportunidade, depois me agradeceu muito, disse que o filho havia contado a meu respeito, sobre minhas idas na prisão e que apenas eu poderia o ajudar.
O detento, de 22 anos de idade, primário e cumprindo pena por roubo e tráfico, ao adentrar na sala e me avistar transpareceu alívio profundo, exclamando haver esperado muito por aquele momento. Eu pedi que se sentasse e mandei que as algemas fossem retiradas. Isso é algo muito peculiar de se presenciar, a retirada das algemas. O agente penitenciário, assim que recebe minha ordem se aproxima, pede ao detento para levantar os punhos, leva a chave até as argolas, coloca-a na fechadura de uma argola e gira, retirando-a do pulso. Com o mesmo movimento retira a outra. O detento ao se ver livre daquelas amarras de ferro sacode os ombros e passa a mão direita sobre o pulso esquerdo e vice-versa, como que a tentar apagar uma marca. Finalmente ele repousa os braços sobre as pernas ou sobre a mesa e respira, pronto para os questionamentos. É um ato simbólico de muito valor, que representa intensamente a liberdade, ao menos uma liberdade passageira, que permitirá que tudo seja dito na frente do juiz, que tudo seja esclarecido, que a defesa seja plena. No caso do rapaz, assim que isso foi feito e ele se posicionou, eu abri a audiência e expliquei-lhe o motivo da realização, resumindo a acusação de falta disciplinar que sobre ele pesava. Em seguida abri a palavra para perguntas do Promotor de Justiça e da Defensora Pública. Após se defender e negar a falta, o detento passou a relatar sobre sua vida. Fez isso num lamento, num desabafo. Disse que estava preso há um ano e meio, que sempre assumiu seus erros, que sempre foi verdadeiro, que tanto no assalto como no tráfico a que foi condenado confessou perante o juiz o cometimento dos crimes, que porém no caso daquela falta disciplinar era inocente, não a tinha cometido, precisava de uma nova chance. Depois, baixando a cabeça, olhando para o chão e inspirando fundo, disse que tinha um filho de um ano e que até aquele momento sequer havia conseguido segurar a criança, que nunca a tinha visto, que o filho não o conhecia, jamais tinha olhado o pai, que sabia que tinha errado mas que não conseguia mais ficar preso, que na prisão nada se aprendia, não tinha trabalho, não tinha estudo, só existia tempo para pensamentos ruins. E arrematou: “Doutor, eu preciso criar meu filho, eu preciso segurar meu filho nos braços, ele nunca me viu. Doutor, eu criei responsabilidade, antes eu era filho, agora eu sou pai, eu preciso cuidar da minha família”. A ar ficou denso, o tempo em suspenso. Passados uns segundos, pedi que o Promotor e depois a Defensora se manifestassem e decidi sobre a falta. Não a reconheci. Em seguida, pedi que ao detento, que continuava com a cabeça abaixada, olhasse para mim. Assim que ele a levantou eu passei a lhe explicar todo o trâmite do processo, esclarecendo inclusive os motivos pelos quais não havia reconhecido a falta, as provas eram fracas. Então lhe informei que nos próximos dias ele teria a possibilidade de progredir de regime e ir para casa, para conhecer o filho. Depois de assinado o termo, dispensei o apenado para retorno ao Presídio. Vi nele um desafogo, com um pequeno sorriso a evoluir para uma breve expressão de felicidade.
Terminadas as audiências, no gabinete ainda trabalhei em muitos processos, apreciei pedidos de prisão domiciliar, avaliei cartas precatórias de prisão enviadas por juízes de outras localidades, reuni-me com os servidores para tratar de questões administrativas. No início da noite encerrei o expediente, saí do Fórum e passei na academia para uma hora de exercícios. Depois vim embora. Neste momento são 23 horas, a tempestade já passou, uma brisa fresca entra pela janela. Estou sereno, o pássaro azul se aquietou. Por esta noite.
Joao Marcos Buch – Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville/SC
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