É indiscutível, hoje em dia, considerar o acesso à educação, à leitura e ao conhecimento um direito de todos, o que constitui, inclusive, numa militância comum e até mesmo as vezes clichê, redutora: de que o que falta ao país é o direito a uma educação de qualidade e para todos.
Essa educação clamada pela sociedade, entretanto, parece limitar-se a uma educação meramente técnica e conteudista, focada na formação, principalmente, para o mercado ou no acúmulo de conhecimentos estáticos, absolutizados. Então, essa formação idealizada pela maioria é reducionista, não inclui o direito à cultura, principalmente a erudita, como sendo um bem inegável e fundamental para todas as classes, em especial as marginalizadas; não inclui o direito à literatura, portanto, no seu sentido mais amplo, em sua diversidade e pluralidade: os mitos, o folclore, os ditos populares, a música popular, os best-sellers, a literatura marginal, etc.
Antônio Candido, em O direito à literatura, ressalta o papel de destaque das “criações de toque poético, dramático ou ficcional” — presentes em todas as sociedades e que constituem a literatura em seu sentido amplo — na formação integral do indivíduo, colocando-a como indispensável, tanto quanto o direito à alimentação e à moradia. Segundo ele “não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação”, pois é uma necessidade intrínseca do ser humano criar e beber dessas expressões.
Mas em que o acesso à essas expressões difere-se ao acesso à educação idealizada pela grande maioria? A diferença é que a literatura pode ser “perigosa”, ela tem sim um “papel formador da personalidade, mas não segundo as convenções”, como o é a nossa educação escolar, ela possibilita vivermos dialeticamente a vida, pois ela traz a experiência conflituosa do real, com suas contradições e dualidades. Ela, portanto — e essa é a grande diferença — humaniza, pois faz viver.
Mas Cândido propõe uma reflexão que vai além, afirmando que a literatura não possui somente essa face, a de ser uma forma de conhecimento e de produzir um enredo, ou a de inscrever nesse enredo uma ideologia ou uma crítica ideológica: a maneira pela qual a mensagem é construída, para o ensaísta, seria o aspecto mais importante da obra literária, pois é ela que fixa o conteúdo, é a estrutura quem dá materialidade ao texto, constituindo-o como objeto. Não o que ou do que ela fala, mas como ela é construída que torna uma obra literária.
Portanto, “quando elaboram uma estrutura, o poeta ou o narrador nos propõem um modelo de coerência, gerado pela força da palavra organizada” e, inconscientemente ou não, essa organização ordena a nossa mente, ou melhor dizendo, mais uma vez nas palavras de Cândido, “o caráter da coisa organizada da obra literária torna-se um fator que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos”, ou seja, juntamente com o conteúdo, essa organização da matéria literária também humaniza, pois nos torna, inclusive, “mais capazes de organizar a visão que temos do mundo”.
Concluindo, mais uma vez a literatura se equipara à experiência da vida, propondo-se como ordenadora de um caos (as ideias, os pensamentos e reflexões de um escritor) para um microcosmos (a obra literária, tomada como objeto por sua forma de organizar a matéria), mas, muitas vezes também, para a renovação da experiência e a atualização das instâncias da vida cristalizadas, promove um caos necessário na organização conservadora e inerte de nossas mentes. A verdadeira literatura não é aquela que representa a realidade, mas a que a recria, distorce, destrói e reconstrói as pretensas verdades sobre ela, é a que nos humaniza integralmente.
Por Ivan Hanauer