País estrangeiro – Memórias de um Brasil profundo é uma coletânea de contos, crônicas e poemas. É memória, é urgência. Fala da efemeridade da vida, ao passo que mostra ser essa, também, a sua constância.
Em “Virgínia”, “poema sobre a ancestralidade do Vale do Jequitinhonha”, vemos a narrativa da tradição feminina passada ao longo de gerações: benzedeiras, parteiras, mulheres portadoras de uma sabedoria ancestral. “Mulheres de Minas”, como diz a poeta, em uma exaltação não só do interior do país, como também do sagrado feminino – presente no poema “Mulher campesina” -, que resiste apesar de tudo.
Trecho do poema “Virgínia”
“…com seus dons naturais,
suas curas divinas…
Mulheres de Minas
Curam as dores da alma,
as dores do corpo…
…rezam pela colheita,
e lindos oratórios enfeitam,
com seus vestidos de chita,
altares de santos
e violas de fita…
Seus rituais são de amor,
de fé e de cura,
são símbolos da nossa mistura,
da nossa cultura,
cultuam memórias sagradas!
E mesmo iluminando caminhos,
ainda são perseguidas,
punidas ou impedidas,
seja na inquisição,
na anulação
ou na extinção,
seus valores são questionados,
seus saberes eliminados.”
5 POEMAS DO LIVRO “PAÍS ESTRANGEIRO”
Eterna saudade
Meu Jequitinhonha
Nas garrafadas alecrim,
cidreira e hortelã
Mãos de rezadeira anciã
Sabedoria guardiã
No anoitecer
Um céu a queimar
No amanhecer
A colheita e o capinar
Nas panelas
Quitutes para adoçar
No tacho, arroz com pequi,
andu, canjiquinha e paçoca
Vitaminas naturais
Minha terra
Minha Minas Gerais
***
Nada mudou
O martírio que existia,
ainda persiste dentro de mim;
no platô,
o sacrifício em vão,
imolação sem anistia.
Tolice imaginar
que existe perdão;
nada é apagado,
nada é esquecido.
Dívida antiga com o povo do sertão.
Não há perdão!
Na pedra,
o sangue escorrendo do altar
ainda mancha esse chão.
***
Barragens
Casarios
Pedra Menina
Museu da Pessoa
e o toque atormentador da buzina
Minha bendita Nossa Senhora,
as ladeiras de Ouro Preto
estão vazias…
Igrejas douradas
abandonadas…
Morro da Queimada,
terra desolada,
terra vasculhada
De tempos em tempos
uma nova exploração,
como és castigada,
hora ciclo do ouro,
hora mineração
Lugar de contrastes…
No solo:
as crateras profundas
Nas paredes:
a arquitetura barroca
Nas imagens:
a arte talhada
Na cruz:
um tecido roxo
Na sexta-feira:
o silêncio e a penitência
Aqui é Minas Gerais…
Terra de lutas sangrentas,
terra de conflitos de tempos atrás
Terra de Ataíde e Aleijadinho
e de gente que não esquece Brumadinho.
Vagão que me leva
Trem das Gerais
Quatro séculos de história
e o silêncio das catedrais!
***
O silêncio
O silêncio da morte é como faces abatidas,
esmorecidas…
como câmaras mortuárias,
como o silêncio de antigas bibliotecas,
esculturas do sepulcro,
como a quietude das capelas sem foles,
criptas com estátuas estateladas,
pedra branca esculpida de olhar choroso,
como tumbas grandiosas dos faraós,
como cortinas fechadas do proscênio,
como o fim do espetáculo.
***
Quem me dera
Meus poemas?
Ah! São tolos…
Tenho versos ordinários, porcos…
São sintéticos, como flores de plástico.
São como borralhos de cinzas podres,
estão mais para ditados populares,
são como o gosto amargo do tabaco
do cigarro que trago,
São como cais desertos,
distantes de seus barcos,
sim, são assim, são rasos, vagos,
são como nós-cegos.
Não são como as ardentes e conscientes palavras de Pablo,
estão distantes das espantosas metáforas de Eduardo,
não são como as fabulosas passagens lúdicas de Mário
e estão longe dos enigmas mirabolantes de Jacques…
Não revelam as profundezas da alma como os versos de Clarice,
e não se parecem em nada com as palavras do boêmio e faceiro Charles,
não são como os surpreendentes livros de Rosa
e estão anos-luz do realismo de José…
Não são como a solidão lascívia de uma Florbela,
não revelam a vanguarda como Abaporu,
não afrontam como Pagu,
e muito menos estão nos versos doces e adoráveis de Cora.
Quem me dera escrever poemas e dedicá-los a Cuba, assim como fez Neruda,
ou defender o povo latino-americano, como fez Galeano.
Quem me dera fosse tão humana como Quintana.
Quem me dera ter o senso de humor de um expert como Prévert.
Quem me dera fosse um grande escritor, assim como a imensa Lispector.
Quem me dera escrever como Freire, Voltaire ou Baudelaire.
Quem me dera decifrar todas as cores de Guimarães,
ou ter a lucidez e as palavras de afago de Saramago.
Quem me dera encontrar as palavras francas de Espanca.
Quem me dera quebrar tabus como fez Pagu.
Quem me dera retratar indígenas, negros, favelas e vilas como fez Tarsila.
Quem me dera fazer brotar nos meus tachos a doçura de Coralina…
Ah! Quem me dera! Quem me dera!
De que vale a minha arte, se não existe para quem?
Sobre a escritora Ivete Nenflidio
Com 48 anos, natural de São Bernardo do Campo – SP, Ivete Nenflidio é escritora, pesquisadora das manifestações tradicionais brasileiras, curadora artística de festivais e articuladora cultural especializada em Sustentabilidade Aplicada aos Negócios, em Leis de Incentivo à Cultura, desde 1996.
Como autora, publicou livros de poesia, contos, crônicas e romances, entre eles as antologias: “Memórias Difusas” e “País Estrangeiro” (Editora Beira), a obra “Cartografias da saudade” (produção independente). Além da ficção “Calendas de Março”, obra viabilizada com recursos da Lei Aldir Blanc. Está em fase de lançamento de outras duas publicações: “Ataque” e “O sereno que habita meus olhos”, com previsão de lançamento para maio de 2022 pela Editora Telha.
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