Comecei a ler O IDIOTA, de Fiódor Mikhailovich Dostoiévski. O romance do escritor russo foi publicado em 1869 e, pela anotação da data de aquisição que costumo fazer na primeira página dos livros, apenas em 2003 ele chegou às minhas mãos. Não sei exatamente porque levei mais 17 anos para lhe lançar o primeiro olhar.
O fato é que assim que a história me apresentou o príncipe Michkin, epiléptico e humanista, de imediato percebi que estava diante um personagem que o autor se dispunha a construir como exemplo de perfeição, de ideal fascinante.
Nesta etapa seria muita pretensão achar que poderia fazer uma crítica sobre esse clássico, aliás, creio que mesmo após o término de sua leitura não terei esse saber, pois não sou especialista em literatura, muito menos a russa, da qual apenas gosto em razão da forma inquietante como os autores que conheço escrevem.
A reflexão que ora faço é sobre o tempo. E aqui vai uma confissão de expectativa desejada. Serei eu lido daqui a um ou dois séculos? Jamais me compararia a autores tão historicamente marcantes, não é isso. Ocorre que se meus textos são publicados e tornados livros, eles sobreviverão a mim, e nesse contexto é factível que leitores do futuro a eles tenham acesso, num tempo em que serei apenas uma vaga e superficial lembrança de um juiz que pretensiosamente acreditou poder trabalhar pela civilidade.
Gosto de alimentar a ilusão de que minhas crônicas terão alguma utilidade, que minha escrita realista, esse meu esgotamento em palavras, será lido e contribuirá para a compreensão de nossa época, no meu caso, da época dos apóstolos de falsos deuses, os deuses da pena e da punição.
O Brasil de 2020 enfrenta no sistema de justiça criminal e penitenciário um governo que fomenta a sanção penal tatuada pela dor e pela miséria, que estigmatiza seres humanos e neutraliza suas vidas, numa necropolítica em escala jamais vista e da qual nasce uma necrojustiça.
Já afirmei antes e repito, sei que não serei perdoado, pois faço parte disso tudo. Tento sim é lutar pela afirmação e respeito das garantias fundamentais e dos direitos humanos, mas não vejo resultados concretos, que modifiquem e superem todo esse estado de coisas inconstitucional que se tornou o cárcere brasileiro.
Ainda assim, como essência de meu dever, procuro reduzir os danos da violência. Nunca deixarei de olhar o horror, sempre levantarei a cabeça e, por mais cruel que ele seja e sofrimento que traga, farei as perguntas que devem ser feitas, remexerei com as hastes da minha voz as fossas de seus calabouços, fazendo o odor nauseabundo da extrema injustiça se levantar e sufocar quem se nega a cheirar e sentir.
Um dia a vida será melhor para todos, haverá mais fraternidade, igualdade, liberdade, haverá mais felicidade. Já não estarei aqui, mas a história que conto, a partir de um remedo de um idiota, espero, estará.
João Marcos Buch é Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville e escritor.
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