Um dia, um rei teve um sonho: sentado em seu trono, no salão central do palácio, ao olhar à sua volta, viu que várias raposas entravam e saíam pelas janelas do salão, correndo de um lado para o outro, à sua volta. Assustado, chamou seus áugures e conselheiros e lhes pediu que decifrassem o sonho, mas nenhum deles deu uma resposta que lhe satisfizesse. Mandou, então, que se espalhassem proclamas por todo o reino descrevendo seu sonho e prometendo a recompensa de um saco de moedas de ouro para quem o decifrasse satisfatoriamente.
No meio da floresta, um lenhador muito pobre, de nome Ravi, leu o proclama e pensava, sentado em um tronco de árvore, sobre como seria bom se ele soubesse o significado daquele sonho, pois um saco de moedas de ouro o redimiria de sua miséria. Quando assim pensava, pousou um belo e pequeno pássaro colorido próximo dele, no tronco, e lhe falou:
“- O que o entristece, Ravi? Gostaria de saber o significado deste sonho do rei?”
Ravi se assustou:
“- O quê? Um pássaro que fala!”
“- Não só falo, como também sei o significado deste sonho, e posso te contar, com a condição de que você volte aqui e divida este saco de ouro comigo. Combinado?”
Bem, pensou Ravi, meio saco de moedas de ouro é sempre melhor do que nenhum saco de moedas de ouro; assim, ele concordou com a condição do pássaro, e este prosseguiu:
“- O sonho do rei significa que o ar do reino está impregnado de traição; que ele se acautele para que não seja traído!”
Assim, Ravi foi e se apresentou ao rei, que, muito grato pela explicação, que coincidia exatamente com o que ele já intuía estar acontecendo, deu-lhe de imediato o saco de moedas de ouro. Porém, no caminho de casa, Ravi começou a pensar:
“-Minha miséria é tamanha que necessitava de todo este saco de ouro para me redimir dela, e não apenas metade. Também, para que um passarinho necessita de moedas de ouro, cada uma delas quase do seu tamanho? Que miserável explorador! O que vai fazer com isso? “
Assim pensando, resolve tomar outro caminho para casa, evitando o ponto de encontro com o pássaro e guardando todo o ouro para si. Com as moedas, pôde construir uma casa bem melhor e mais confortável do que sua choupana, e ali viver com relativo conforto.
Um dia, porém, passado algum tempo, o rei tem outro sonho: sentado em seu trono, ao olhar para cima, viu que havia um punhal pendente do teto, prestes a cair sobre sua cabeça. Assustado, acorda e chama seus guardas:
“- Não chamem ninguém; vão diretamente à casa daquele lenhador, Ravi, e o tragam aqui. Só ele entende de sonhos, neste reino. Diga-lhe que lhe darei dois sacos de moedas de ouro como recompensa.
Qual não foi a surpresa de Ravi ao ver a guarda real em sua porta; tentou se esquivar do convite, mas foi informado pela mesma que a recusa a um convite do rei era punida com a morte. Assim, pediu que lhe contassem o sonho e lhe dessem um dia para pensar; no dia seguinte, estaria com o rei. Quando os guardas se retiraram, porém, entrou em desespero: como faria para salvar a sua vida?
Sua única saída foi voltar à floresta e sentar-se naquele tronco, pondo-se a lamentar. Em breve, o pássaro veio:
“- O que houve, Ravi? O rei teve um novo sonho?
“- Sim… Se puder me ajudar, comprometo-me a, seja lá o que for que eu receba, dividir contigo, com certeza!”
– Então, o pássaro, aceitando a proposta, falou:
“- O sonho do rei indica que o ar do reino está impregnado de violência; vai e diz a ele para que se acautele para não ser vítima de nenhum ato violento!”
Ao falar do significado do sonho ao rei, este, mais radiante que nunca, entregou a Ravi, os dois sacos de ouro. No caminho de volta para casa, porém, Ravi pôs-se a pensar:
“- Como esse passarinho é desleal e aproveitador! Usa minha dor e aflição para enriquecer às minhas custas! É um vil e ordinário! Já terá sua recompensa em uma bela pedrada!”
Com este pensamento em mente, Ravi se dirige ao local do encontro; pega uma pedra na mão e a esconde às costas.
Quando o pássaro se aproxima, ela a lança com força, mas o pássaro, espertamente, levanta voo a tempo, e a pedra apenas passa de raspão. Assim, Ravi volta para casa e passa a viver com ainda maior comodidade e luxo.
Porém, o tempo gira, e, um dia, o rei tem um novo sonho. Agora, sentado em eu trono, vê ovelhas muito brancas entrando e saindo pelas janelas, e correndo à sua volta. Sem hesitações, chama sua guarda e manda que tragam Ravi à sua presença, com a promessa da recompensa de três sacos de ouro.
Perplexo ante a guarda á sua porta, Ravi usa a mesma estratégia de ouvir o sonho e pedir um dia para pensar. Porém, agora, seu desespero é total e sem perspectivas: se é que o pássaro sobreviveu, como haveria de confiar nele novamente, após quase morrer através de suas mãos? Como havia sido estúpido, ingrato e brutal! Reconhecendo seu erro passado, chorou amargamente.
Sem ter mais o que fazer, Ravi arrastou-se até a floresta e sentou-se no antigo tronco. Para sua surpresa, o pássaro, em breve, aproximou-se e pousou ao seu lado:
“-Novo sonho do rei, Ravi?”
Sem caber em si de alegria, Ravi pôs-se de joelhos ante o pássaro, pedindo-lhe mil perdões por sua conduta passada. O pássaro, sem dar muita atenção a estas demonstrações de arrependimento, concordou em dizer o significado do sonho, com a mesma condição de sempre: metade da recompensa.
“- Diga ao rei que as ovelhas representam pureza; agora, há pureza e honestidade impregnando o ar do reino. Que ele desfrute e fique em paz.”
Correndo na direção do rei e relatando o sonho, Ravi recebeu abraços e condecorações de um soberano ainda mais feliz, pois, afinal, agora a notícia era boa. Ao receber seus três sacos de moedas de ouro, Ravi, desta vez, finalmente, mostrou-se sinceramente determinado a corrigir seus erros passados, e foi ao ponto de encontro:
“- Aqui está, belo pássaro colorido: o meio saco de ouro que te devia da primeira vez, um saco de ouro que te devia da segunda vez e um saco e meio que te devo por este terceiro sonho. Ao todo, três sacos de ouro, tudo o que acabo de receber, além de meu pedido de perdão.”
Para sua surpresa, porém, o pássaro lhe disse:
“- Não necessito de moedas de ouro, Ravi; tudo o que preciso são sementes para me alimentar, um galho para pousar, asas para voar e meu canto, para embelezar meus dias. Tenho tudo isso sem necessitar de ouro. Também não necessito de seu pedido de perdão, pois nunca esperei que você agisse de maneira diferente. No primeiro momento o ar do reino estava impregnado de traição, e você me traiu; no segundo momento, o ar do reino estava impregnado de violência, e você foi violento comigo. Agora, o ar do reino está impregnado de pureza e honestidade, e você está sendo puro e honesto comigo. Poucos homens são capazes de serem fieis a si mesmos, sem se deixarem contaminar pelo ar à sua volta, e nunca esperei que você fosse um deles. Leve seu ouro e seja feliz se puder, apesar da miséria continuar vivendo dentro de ti.
Extraído (linguagem adaptada) do Katasaritsagara, ou “Oceano do rio de contos” indiano.
Obs: não é demais lembrar que o elemento ar, em várias tradições, está associado ao mundo emocional, à psique humana.
O texto foi trazido da página de Lúcia Helena Galvão, filósofa.
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