O que torna tudo tão urgente

O que torna tudo tão urgente não é certeza de que quando ficarmos velhos a gente vai morrer. Mas a incerteza do instante da morte, que pode ser daqui a um segundo, ou se a gente tiver muita sorte, lá na frente, beirando os cem anos.

A gente vai morrer. Isso sempre esteve acordado, num contrato assinado desde que a gente nasceu, mas só nos damos conta quando a vida apronta e num piscar, de repente, nos avisa , que quem a gente ama, tão cedo morreu. E tudo fica tão urgente, que pouco importa se não fizemos o clareamento nos dentes, se não perdemos cinco quilos, se não trocamos de carro esse ano, se o vizinho nos chateou.

E tudo fica tão urgente, que definitivamente ganhamos a consciência do valor de cada segundo. Ele tinha trinta anos e morreu dormindo, depois de pegar no sono sorrindo assistindo uma comédia. Ataque fulminante do coração. Ela tinha vinte e seis, saía do curso de inglês quando morreu atropelada por um caminhão. Ele tinha um milhão de planos e uma vida inteira pela frente. Ela preparava o enxoval para se casar em dezembro. Ele planejava viajar no Carnaval. Ela deixou um quilo de carne descongelando em cima da pia; faria no almoço um delicioso macarrão. Ele iria se matricular na academia pra entrar em forma para o verão. Não deu tempo. Nunca dá. A gente só compreende essa urgência quando a morte atrevida decide se manifestar. E leva quem a gente ama e ainda tinha tanto a viver. Acompanhar o crescimento dos filhos, viajar, envelhecer.

O que torna tudo tão urgente é que quando a gente nasce, já começa a morrer. E quando a finitude se materializa à nossa frente, é que a vida impõe seu verdadeiro sentido. Não devemos desperdiçar, nem os dias úteis, nem os feriados, nem os sábados nem domingos.

Não devemos desperdiçar tempo nenhum que seja. Mas sim, beber, degustar, devorar a vida em toda a sua beleza.

Deixando de lado os problemas pequenos, os rancores encharcados de veneno, a mania estúpida de reclamar sem motivo, o hábito medíocre de olhar para o próprio umbigo e invejar a grama do vizinho.

É tempo de agradecer, de amar, e de crer no milagre do seu caminho, e não dar espaço para sentimentos opacos, rasos, mesquinhos.

É tempo de acumular sentimentos, e lembranças bonitas.

A morte não permite que a gente leve na bagagem carro importado, cartão de crédito platinado nem propriedade no litoral. Por isso corte com a mediocridade o seu cordão umbilical. E ame, sorria, diga bom dia, plante bananeira, não cuide da vida alheia, se arrisque sem medo do que vão pensar, mude de casa, de trabalho, de namorado, se o atual não mais lhe emocionar.

Beije um, ou beije trezentos, se assim lhe convir. Mas cuidado com a herpes, convém alertar. Não tolha o seu próprio direito de vir e ir. De errar. De amar. Felicidade é um escolha, alimentada por bons sentimentos. Mas faça tudo o que tiver que fazer, agora, porque no instante a seguir, pode não dar mais tempo.

Não há tempo. Acredite. O amanhã é uma ilusão, e a vida não espera, quando a morte impera, não há negociação. E o trato das duas é uma clausula misteriosa nesse contrato que a gente assina quando começa a viver. E a gente só se dá conta, quando o telefone toca, avisando que quem a gente ama acabou de morrer. De desastre, de assalto, de ataque do coração. A morte essa bandida, tem um repertório sem fim. E desafia, assusta, e pouco se importa, se tínhamos uma agenda pra cumprir na semana, um sobrinho para batizar, roupas secando no varal, celular para buscar no conserto, ou um vinho preferido guardado para uma ocasião especial. Ela é implacável até não poder mais.

E quando se manifesta ao nosso lado, desperta essa consciência de que não há um prazo fixo de validade. Ela pode vir ao noventa ou aos trinta anos de idade. A única certeza é que ela vem sem avisar, e chega de repente, só pra contrariar. Metida, pirracenta, polêmica, exibida, transbordando em pretensão? Ou sábia, e serena que aparece no fim da nossa missão? Eis outro mistério que não dá tempo pra compreender. Aliás não dá tempo de nada. Nem pra mágoa, queixume, ou conversa fiada. Só dá tempo é de viver. Viver em tempo integral. Antes que nosso filme acabe e as legendas anunciem o final.






Herton Gustavo é publicitário, poeta, dramaturgo, roteirista, ator e magro nas horas vagas. Acredita no amor, e no poder das dietas japonesas. É solteiro, desde 1986. Tem no currículo dez textos teatrais inéditos. E onze pés na bunda. Na internet alimenta as Fanpage H.G do Rivotril e Herton Gustavo Ao Quadrado. Mas está sempre com fome.