Cada vez mais, vivemos em grandes cidades, cheias de pessoas, de carros, de casas, de lixo etc. A formação das metrópoles é um fenômeno global, sobretudo com a “globalização”, que, ao diminuir os espaços, propiciou o acúmulo de diferentes culturas, povos e classes em um mesmo espaço urbano.
Sendo assim, os centros urbanos contemporâneos são extremamente polifônicos, ao mesmo tempo em que cultivam problemas típicos da sua estrutura. Ao analisar esse fenômeno, Zygmunt Bauman nos oferece algumas considerações interessantes e imprescindíveis para um entendimento maior da problemática.
Os espaços urbanos grandes, superlotados e complexos, criam problemas típicos de grandes cidades, como, por exemplo, a violência e, consequentemente, o medo. Este é acentuado, inclusive, pelo comportamento individualista e egoísta que temos, de modo que achamos que o outro é sempre uma ameaça, já que não há motivo para que o outro também não seja uma pessoa que só pensa em si mesma. Sendo assim, temos o primeiro grande problema das cidades, para Bauman, qual seja, o de que “[…] as cidades são espaços em que estranhos ficam e se movimentam em estreita proximidade uns dos outros”.
Ou seja, contrariamente ao que se espera, não há conectividade entre as pessoas, de tal modo que cada uma é uma ilha afetiva isolada da outra, que permanece inexplorável e, por conseguinte, estranha. Dividir os espaços com esses “estranhos”, como acentua o sociólogo, é algo indesejado e incômodo, do qual se busca escapar ou, na impossibilidade da fuga total, no mínimo criar “[…] um formato que torne palatável o convívio com eles e tolerável a sua companhia”.
Dessa maneira, os indivíduos buscam aproximar-se de quem parece ser menos estranho e, portanto, adequado ao convívio. A formação dos grupos propícios e adequados ao convívio, no entanto, acontece de forma bem distinta, segundo Bauman. De um lado, temos os moradores da camada superior que formam seus guetos de modo voluntário e estruturado. De outro, observamos os moradores da camada inferior formando os seus guetos de forma involuntária e desestruturada.
Os guetos voluntários formados pela camada superior são encontrados nos condomínios fechados construídos em áreas nobres da cidade ou, como é a tendência, organizados em áreas distantes do caos encontrado dentro da cidade. Por outra via, os guetos involuntários formados pela camada inferior não são planejados, estruturados, muito menos afastados do caos urbano.
São “construídos” dentro do próprio caos urbano, leia-se, são os centros de todos os problemas ou pelo menos são considerados assim pela camada superior, de tal modo que se torna imprescindível para a segurança e a qualidade de vida da camada superior ter os seus guetos protegidos do caos produzido pela camada inferior. Em outras palavras, viver em um condomínio planejado significa estar fisicamente dentro da cidade, mas espiritualmente fora dela.
“O traço mais proeminente do condomínio é seu isolamento e distância da cidade. Isolamento significa a separação daqueles considerados socialmente inferiores e, como insistem os construtores e agentes imobiliários, o fator-chave para garantir isso é a segurança. Isso quer dizer cercas e muros ao redor do condomínio, guardas de serviço 24 horas por dia controlando as entradas e um conjunto de instalações e serviços para manter os outros do lado de fora.”
“Os outros” são os moradores da camada inferior, os quais também são chamados de favelados, produtores dos problemas urbanos e desmerecedores, assim, de inclusão e de integração social. Diante das cercas e muros que separam o lado A do lado B, observamos a formação de um verdadeiro apartheid social, em que os problemas urbanos produzidos por todos que ocupam a cidade são atribuídos a apenas um grupo, o qual, além de culpado, deve, obviamente, cumprir sua pena, vivendo em ruas miseráveis e esquálidas de que a camada superior tenta, sem economizar esforços, escapar.
“A cerca separa o ‘gueto voluntário’ dos ricos e poderosos dos muitos guetos forçados dos pobres e excluídos. Para os integrantes do gueto voluntário, os outros guetos são espaços aos quais ‘nós não vamos’. Para integrantes dos guetos involuntários, a área na qual estão confinados (por serem excluídos de outras) é o espaço ‘do qual não temos permissão de sair’.”
Assim sendo, há uma definição do papel social que cada um deve ocupar, bem como o jugo que a camada inferior deve carregar, uma vez que é a causadora dos problemas urbanos. Alheia a isso, já que não contribuiu com nenhum dos problemas presentes na cidade, a camada superior vive “[…] fora da vida da cidade, desconcertante, confusa, vagamente ameaçadora, tumultuada e difícil, e ‘dentro’ de um oásis de calma e proteção”, do qual nenhum “estranho” pode adentrar.
Esse fenômeno de segregação culmina no que o polonês chama de “mixofobia urbana”, isto é, o medo de se misturar a indivíduos estranhos ao seu lugar comum, levando à formação dos supracitados guetos voluntários, ou melhor, “[…] ilhas de similaridade e semelhança em meio a um oceano de variedade e diferença”. O apartheid do arame farpado parece, no mínimo, contraditório, em um mundo que se diz globalizado, a não ser que a globalização exista apenas como fábula, para lembrar Milton Santos.
O que esse fenômeno demonstra é a insistente incapacidade que o ser humano parece querer ter em não conseguir perceber-se como parte dos problemas produzidos socialmente, no melhor estilo “o inferno são os outros”. Do mesmo modo, fica claro o preconceito e a intolerância diante do “estranho”, do “bárbaro”, do “selvagem”, que é visto como sendo incapaz de ser incluído socialmente. Além, é claro, de uma estratificação excludente, que, por meio do dinheiro, privatiza soluções, ao mesmo tempo em que uma massa sofre com os problemas que os privilegiados também ajudaram a construir.
Em um mundo que se diz conectado, globalizado, interligado, observar fenômenos de segregação e isolamento é paradoxal, o que é comum em um mundo confusamente percebido, lembrando Milton mais uma vez. Obviamente, a culpa dos problemas urbanos não está tão somente no fato de o indivíduo optar em morar em um condomínio fechado, mas encarar isso como a solução plena e definitiva, assim como enxergar no “estranho” da camada inferior a raiz para tais problemas, é sim fonte de outros problemas, como o ódio, a intolerância, o preconceito e o descaso com pessoas menos afortunadas.
Como diz Bauman, os guetos voluntários promovem algum conforto espiritual, de maneira a tornar a convivência mais fácil com aqueles com os quais se pode ter uma vida social superficial, sem a demanda do esforço necessário para compreender, negociar e se comprometer com outras pessoas diferentes, criando, assim, hiatos discursivos separados por grades, muros e arame farpado.
“Uma vez que esqueceram ou não se preocuparam em adquirir as habilidades necessárias para uma vida satisfatória em meio à diferença, não é de estranhar que os indivíduos que buscam e praticam a terapia da fuga encarem com horror cada vez maior a perspectiva de se confrontarem cara a cara com estranhos. Estes tendem a parecer mais e mais assustadores à medida que se tornam cada vez mais exóticos, desconhecidos e incompreensíveis, e conforme o diálogo e a interação que poderiam acabar assimilando sua ‘alteridade’ ao mundo de alguém se desvanecem, ou sequer conseguem ter início.”
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