Neruda foi muito além da escrita de vinte poemas de amor e canções desesperadas, de muito mais que versos de capitão ou sonetos talhados em madeira… Neruda talhou o próprio amor.
Como é o amor do poeta que tantos poemas desvela, tantas poesias – umas (muitas!), de amor -, que o Sol, as chuvas, os desânimos do mundo não impedem de prosseguir em seu labor? Como é o amor de quem ao amor não se nega, de quem se dá e se entrega sabendo nele esse destino propenso tanto para a dor? É inevitável: “tu e eu tínhamos que simplesmente amar-nos” (NERUDA, 2016, p. 10) É a si, e de si mesmo, anterior.
É o amor em que “quando antes de amar-te me esqueci de teus beijos/ meu coração ficou recordando tua boca” (NERUDA, 2016, p. 13). Existe antes de existir, recorda antes do que recordar. É um amor que busca lembrar os beijos não acontecidos, a boca ainda intocada, e que nessa lembrança mesma, nesse esforço se descobre amor. Amor de manhãs, de auroras… Essa é a sua força. Uma força que escapa ao espaço-tempo, que não se recorta, contorna, corta ou retém ou explica. É tão forte, tão humana e desumanamente forte que não se contém, ou tampouco se sustém. É sempre presente – no antes, no agora, no depois (“por nosso amor que não foi consumido/ continuará vivendo conosco a terra”), na coisa mais ínfima, no gesto (tosco, sem propósito), no cabelo, no riso, no rosto; naquele rosto às vezes sem vida, pétreo, ruim, de ressaca, de cansaço, de nojo.
O nojo! Nesse amor não existe nojo. Tudo é enlevo, tudo é sublime, tudo é amor. O amor é amor. E não pode ser mais amor porque não pode ser além dele mesmo: amor. O que há além dele é o nada, e o tudo. Porque esse nada, absoluto, robusto, completo, é total. Não há outra teleologia. Tudo é em função dele.
Áspero, rude, esse amor provoca dor, precipita fogos dolorosos, abre queimantes caminhos e feridas. Mas é também o amor da recordação da vez que “foi como nunca e sempre” (NERUDA, 2016, p. 12), em que se vai onde não espera nada e se acha tudo o que está esperando. É terno, silencioso, cúmplice: “juntos tu e eu, amor meu, selamos o silêncio […] sustentamos a única e acossada ternura” (NERUDA, 2016, p. 17).
O amor de Neruda é o amor em que ela é tudo – seu abraço é o abraço do todo -, o amor em que se vê na vida do outro, no que se ama, “todo o vivente” (NERUDA, 2016, p. 16); amor que roga que nada se transforme na amada, nada mude, nada a toque “senão o sal do frio!” (NERUDA, 2016, p. 18); um amor em que “teus quadris imponham na água/ uma medida nova de cisne ou de nenúfar/ e navegue tua estátua pelo cristal eterno” (NERUDA, 2016, p. 18); amor faminto, guloso dela, de tudo quanto nela existe – da boca, da voz, dos olhos, do riso… O amor do poeta é uma metáfora, uma metáfora sem comparação – é maior do que tudo, a nada equiparável.
Amar, para Neruda, “é uma viagem com água e com estrelas […], “um combate de relâmpagos/ e dois corpos por um só mel derrotados” (NERUDA, 2016, p. 20). Anteriormente, antes de amar, nada era seu, não contava, nem tinha nome: “tudo era dos outros e de ninguém”. Tudo era alheio, vazio, morto, até que “tua beleza e tua pobreza/ de dádivas encheram o outono” (NERUDA, 2016, p. 33). Amar transforma. Amar enche de vida. Amar é feito de azuis (de azuis-celestes), de instantâneos, da supressão dos cinzentos do mundo. Amar é luz, é fogo, é espuma.
O amor nerudiano é sobremaneira imagético, visual; tem atenção a cada detalhe, a cada parte dessa outra parte que é o ser amado. E cada uma das partes, físicas, expressões e semblantes, lhe merece poesia.
Merecem poema o riso (“nega-me o pão, o ar,/ a luz, a primavera,/ mas nunca o teu riso,/ porque então morreria”), os cabelos (“pesado, espesso e rumoroso,/ no ventaria do castelo/ o cabelo da amada/ é um lampadário amarelo”), a voz (“Ah tu voz misteriosa que el amor tiñe y dobla/ en el atardecer resonante y muriendo!/ Así en horas profundas sobre los campos/ he visto doblarse las espigas en la boca del viento”), as unhas, os dedos (“amo teus dons puros […] tuas unhas oferecidas no sol de teus dedos”), a boca, os pés (“tua boca, teu pé, tua luz, tuas penas/ foram o patrimônio da vida”), as mãos (“tus blancas manos, suaves como las uvas”), os olhos (“tienes ojos profundos donde la noche alea”), todo o corpo: “Cuerpo de mujer, blancas colinas, muslos blancos,/ te pareces al mundo en tu actitud de entrega./ Mi cuerpo de labriego salvaje te socava/ y hace saltar al hijo del fondo de la tierra”.
Ambivalente – pois que de dois modos é a vida, ama-a e não a ama, ama-a “para recomeçar o infinito”, para que não deseje amá-la nunca – é um amor sem início e sem fim, um amor de duas vidas: “Por isso te amo quando não te amo/ e por isso te amo quando te amo”. Por isso, também, a quer e não quer: “Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero./ Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido// Porque en noches como esta la tuve entre mis brazos,/ mi alma no se contenta con haberla perdido”.
O amor de Neruda é um amor sem término, um amor que “assim como não teve nascimento/ morte não tem, é como um longo rio,/ só muda de terras e de lábios” (NERUDA, 2016, p. 108). É um amor de marinheiro – o amor que o poeta ama -, pois os marinheiros “besan y se van./ Dejan una promesa./ No vuelven nunca más”. O amor do poeta é “el amor que se reparte/ en besos, lecho y pan./ Amor que puede ser eterno/ y puede ser fugaz./ Amor que quiere libertarse/ para volver a amar./ Amor divinizado que se acerca/ Amor divinizado que se va”; amor que sabe que há horas de partir, amor de naufrágios.
É um amor-elogio, amor-galanteio, amor que necessita se firmar, e se firma, exatamente, por meio dos questionamentos que se coloca e das cristalizações daí advindas. É, em simultâneo, sincero e insincero, verídico e inverossímil. É demais. É largo, grosso, grande, opulento, e o contrário de tudo isso, porque a raiz de tudo, desse amor, é o amor que o poeta sente pelo amor em si. Como escrevera Nietzsche, “em última análise, amam-se os nossos desejos, e não o objeto desses desejos”. Neruda, sobretudo, ama amar. Neruda, sobretudo, ama a pulsão, a libido, o fruir. Sobretudo, não concebe a vida sem amor.
Por isso, seu amor é um amor de manhãs, de “meio-dias”, de tardes e de noites. De manhã, é um amor venturoso, inequívoco, inevitável, amor-perfeito, de fome e de sede dela; ao meio-dia, comedido, “porque o amor não pode voar sem deter-se” (NERUDA, 2016, p. 43); à tarde, transparente, a razão e o amor, gêmeos, se elevando como duas asas, renascido, doído: “trouxe o amor sua cauda de dores,/ seu longo raio estático de espinhos,/ e fechamos os olhos porque nada,/ para que nenhuma ferida nos separe” (NERUDA, 2016, p. 74); “talvez não ser é ser sem que tu sejas” (NERUDA, 2016, p. 82); à noite, “amada, amarra teu coração ao meu/ e que eles no sonho derrotem as trevas” (NERUDA, 2016, p. 95), que o amor continue vivo, que ela siga florescendo, florida, “que cheires o amor do mar que amamos juntos/ e que sigas pisando a areia que pisamos” (NERUDA, 2016, p. 105).
À noite, “tudo deixou de ser, menos teus olhos” (NERUDA, 2016, p. 106), nasce o medo e a certeza do fim, em que o poeta “[morrerá] beijando [sua] louca boca fria,/ abraçando o cacho perdido de [seu] corpo,/ e buscando a luz de [seus] olhos fechados.// E assim quando a terra receber nosso abraço/ iremos confundidos numa única norte/ a viver para sempre de um beijo a eternidade” (NERUDA, 2016, p. 109).
O amor sobreviverá. A época em que ela o amou será por outra azul substituída, “e quando estiver recém-lavado o mundo/ nascerão outros olhos na água/ e crescerá sem lágrimas o trigo” (NERUDA, 2016, p. 112).