” Um dia destes solicitaram-me que interviesse numa conferência internacional de telecomunicações em Maputo. O tema era, felizmente, vago: a sociedade digital.
Decidi contar um episódio verídico que se passou comigo em finais de Março do ano passado. É esta história que transcrevo agora.
Estavam-se em plenas cheias, fomos descobertos pelas cadeias internacionais de televisão (continuamos a ser assunto por via da desgraça) e o HOTEL Polana logo se converteu num centro mundial de telecomunicações, uma base de operações da BBC, CNN e outras estações em disputa pela tragédia. As cheias foram um bom exemplo em como essa tendência negativa de esgravatar acontecimentos dramáticos pode actuar a nosso favor.
Nesses dias fomos nós o centro do universo. Para muitos neste mundo que se quer aldeia global, o nome e o rosto de Moçambique faziam estreia. Não era apenas a Rosita que nascia em inéditas condições (em cima de uma árvore). Para uma faixa de telespectadores, acontecia o nascimento da nossa imagem enquanto país.
Estávamos nesse rebuliço quando recebi uma chamada telefónica de Londres solicitando uma entrevista em directo. E o mais grave, em inglês. Fiquei nervoso. Falar em directo e em inglês para a BBC é ser catapultado para um território duplamente estranho e estrangeiro.
Combinou-se que seria às 10h30 da noite e eu iria ao HOTEL Polana. Nesse aprazada noite, cheguei e mandaram-me entrar para um chapa-cem (uma carrinha de transportes colectivos) e juntamente com jornalistas embarcámos numa fantasmagórica viagem pelos subúrbios de Maputo. (…)
Andámos uma meia hora e quando parámos dei por mim em pleno bairro de Polana Caniço, na berma de um imenso buraco. (…)
Ao lado da fantástica cratera, os técnicos da BBC tinham erguido um cenário ainda mais surrealista. Cercaram um recinto de uns seis metros quadrados com uma fita amarela onde se viam uns dizeres “NO ENTRY”. No meio do escuro abriram um espaço iluminado como se fosse um palco feito de luzes, num mundo em que só é visível o que se converte em espetáculo.
No canto do quadrado luminoso, se acumulava uma panóplia de máquinas, geradores, holofotes, centros de transmissão, telefone-por-satélite, centenas de cabos e fios. Parecia um estádio de futebol, com os focos dirigidos para um centro vazio. À volta do terreno iluminado estavam sentados centenas e centenas de curiosos, em estado de excitação. (…)
Quando transpus aquela fita amarela foi como se, de repente, eu me convertesse num ser de outro mundo. Os olhares concentravam-se em mim e um silêncio profundo se instalou. De repente, um jovem levantou-se e gritou, apontando para mim:
– Ei malta: eu não disse que isto era cinema? Aquele gajo ali é o Chuck Norris!
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De imediato se estableceu um imparável alarido. Cuck Norris – esse 007 dos subdesenvolvidos – ali em plena Polana Caniço? E a multidão gritava, agitava os braços. Uns jovens, mais afoitos, desenhavam vigorosos golpes de karate no ar, desfazendo-se de invisíveis inimigos.
A entrevista esta prestes a começar e já me ligavam com fios, microfones e auscutadores – quando o realizador do programa percebeu que com tal barulho à volta não era possível gravar. Pediram-me, em apuros, que falasse à multidão solicitando silêncio. Aproximei-me das pessoas e transmiti-lhes o pedido:
– Iii, o tipo fala português! Chuck Norris, eh pá, pede lá aos gajos para tapar este buraco.
E choviam os requerimentos e os pedidos. Que arranjassem a estrada, o posto de saúde, a escola, as casas. Tudo era prioritário. Não podia desfazer o equívoco. Deixei para mais tarde o esclarecimento. No momento, urgente era o silêncio.”
MIA COUTO