O céu estava enfarruscado. O vento soprava nuvens cinzentas desgrenhadas. Nem lua nem estrelas. Bem dizia minha mãe que em dia de chuva elas se escondem, por medo ficar molhadas. A gente se lembrou de Prometeu: Foi ele quem roubou dos deuses o fogo – por dó dos mortais em noites iguais àquela. Se não fosse por ele, o fogo não estaria crepitando no fogão de lenha. O fogo fazia toda a diferença. Lá fora estava frio, escuro e triste. Na cozinha estava quentinho, vermelho e aconchegante. No fogo fervia a sopa: o cheiro era bom, misturado ao cheiro da fumaça.
Comida melhor que sopa não existe. Se eu tivesse de escolher uma comida para comer pelo resto da vida não seria nem camarão, nem picanha, nem lasanha. Seria sopa. Sopa é comida de pobre, que pode ser feita com as sobras. Pela magia do fogo, caldeirão, água e qualquer sobra vira sopa boa. Tem até a história da sopa de pedra.
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O fogo é um poder bruxo, tem o poder de irrealizar o real: Os olhos ficam enfeitiçados pela dança das chamas, os objetos em volta vão perdendo os contornos, acabam por transformar-se em fumaça. Quando isso acontece, começam a surgir, do esquecimento em que estavam guardadas, as coisas que a memória eternizou. O fogo faz esquecer para poder lembrar. Digo sempre para os meus clientes que, em vez do divã, que lembra maca de consultório médico, eu preferiria estar senado diante de um fogão aceso. É diante do fogo que a poesia aparece melhor. Não admira que Neruda tivesse dito que a substância dos poetas são o fogo e a fumaça.
O fogão de lenha é lugar de saudade. Porque os fogões de lenha, eles mesmos, são fantasmas de um mundo que não mais existe. […]
Aí a memória poética se transforma em imaginação teológica. Já sugeri que teologia é coisa que deve ser feita na cozinha. Claro que não é qualquer cozinha. Cozinha de microondas e fogão a gás não serve. Sei que é mais prático. Fogão a lenha é coisa complicada. É preciso muita arte para acender o fogo. E é preciso cuidado para que ele não se apague. Mas que sonhos me fazem sonhar um forno de microondas? Que sonhos fazem sonhar um fogão a gás? […]
Lembro-me do meu assombro quando meu pai completou 60 anos. Como ele me parecia velho!
Com certeza já estava remando à terceira margem do rio. Eu acho que a terceira margem é a saudade. Diz o Riobaldo (de Guimarães Rosa) que “toda saudade é uma forma de velhice”. Hoje, 15 de setembro, jogo no rio da saudade mais um ano de vida. A vela está ficando curta. E o faço rezando, com Maria Alice e Adélia (Prado):
Meu Deus,
me dá cinco anos.
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
a ressonar das pessoas no quartinho.
Me dá a negra Fia para eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,
meu pai.
(Adélia Prado,Bagagem, Editora Record, página 12)
Trecho da crônica de Rubem Alves extraída do livro A Grande Arte de Ser Feliz, Editora Planeta, 2015, páginas 22 a 28.
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