Por Vinícius Siqueira
Conteúdo postado originalmente no site Colunas Tortas
Para Bauman, há três formas do medo afligir as pessoas em nossa sociedade líquida: 1) pelo medo de não conseguir garantir o futuro, de não conseguir trabalhar ou ter qualquer tipo de sustento, 2) pelo medo de não conseguir se fixar na estrutura social, que significa, basicamente, o medo de perder a posição que se ocupa, de cair para posições vulneráveis e 3) o medo em torno da integridade física.
Bauman também toma o conceito de “medo derivado”. Ao contrário do medo primário, o medo derivado (que é secundário) é um medo inculcado socialmente. O medo primário se trata do medo da morte na sua forma mais pura: é o medo de levar um tiro quando se está na guerra; já o medo secundário é aquele que nos obriga a seguir pelo caminho mais longo para não passarmos pelo meio da favela.
Este conceito, me parece, toma emprestado as características do conceito de habitus, de Bourdieu, pois o medo secundário é uma propulsão, ele trabalha enquanto disposição socialmente incorporada. Para este medo, há práticas socialmente aceitas e incorporadas que representam sua fuga.
Para onde estas análises levam? Primeiramente para a constatação de que trocamos segurança por proteção. Existe uma diferença (não muito tratada neste livro, mas bem explicada em “Comunidade”). Basicamente, segurança é aquilo que nos constitui. Proteção são equipamentos. Segurança = interior, proteção = exterior. Ser inseguro (como explicita a análise de Bauman) é ser um sujeito constituído de tal forma que a incerteza, a liquidez das relações e o medo de tudo, são características a priori. A priori histórico, claro.
Se trata de dizer que o inseguro é aquele que fica olhando o celular do parceiro para saber se ele ou ela está traindo. Já a proteção pode ser vista no número de câmeras instaladas em estabelecimento/condomínios/instituições, coletes à prova de balas, armas que são compradas para se usar “contra bandidos”, senhas para impedir que qualquer um veja a tela de seu celular e etc.
A cidade
Este princípio da proteção como solução para a insegurança também é vista fora dos equipamentos para a guarda da integridade física: ao citar a cidade como um local de encontro, como um espaço mixofílico e mixofóbico, ele trata de estabelecer alguns paralelos entre a arquitetura urbana e a insegurança pós-moderna.
A cidade é o lugar do encontro, da mistura, do novo, da efervescência, é o lugar onde tudo e todos se encontram mesmo sem querer se encontrar, é o lugar onde estar com quem não se conhece é um pressuposto, é um termo aceito tacitamente e, por isso, ela é um espaço mixofílico (que promove a mistura, que faz da mistura um gosto aceitável e aprovável). No entanto, a sujeira precisa ser limpa. É na cidade onde pode-se encontrar os resultados da exclusão: os mendigos, as favelas e seus moradores, todos estes estranhos são seres que provocam o desprezo e a repulsa dos cidadão ditos normais. A mixofobia (a repulsa pelo estranho) é vista materialmente de forma peculiar.
Ao invés de utilizar o exemplo de Bauman, prefiro me referir à Avenida Paulista. A Paulista é a principal avenida paulista, é o centro financeiro da cidade e, como é de se esperar, é um antro da exclusão, do comportamento blasé e da normatização hegemônica. Em frente aos grandes prédios, além dos vários seguranças que efetivamente estão lá para espantar os excluídos, há a presença de longas barras de ferro cheias de pontas que ficam acopladas em frente as vitrines. Qual o motivo? Mendigo não dormir. Isto é uma expressão clara da mixofobia.
A mídia
Segundo Bauman, a sociedade é um dispositivo que visa tornar tolerável a experiência da vida tendo a certeza da morte. Para ele, há duas formas de se lidar com a morte: 1) a desconstruindo, ou seja, detalhando completamente suas causas de maneira que, no fim, parece que ela poderia ser evitada e 2) a banalizando, que quer dizer, mostrá-la como algo do cotidiano. O programa do Datena é o exemplo perfeito de ambos. Brasil Urgente tem a enorme vantagem de falar, basicamente, só de desgraça. Os acidentes de carro são descritos minunciosamente e a culpa é sempre de um motorista bêbado ou distraído. A morte não é um fato, é um acidente, de acordo com o discurso do programa. Além disso, a quantidade de mortes ali já deixa claro a banalização do acontecimento.
A morte não é só, digamos, morrer. Bauman coloca graus de morte, mas enquanto relação para quem sente: a morte em primeiro grau é, de fato, a morte, é deixar de existir; já a morte em segundo grau (que seria a experiência primária de um sujeito vivo com a morte) seria a morte do outro, a morte de quem nos relacionávamos; enquanto a morte em terceiro grau é a quebra do relacionamento, a exclusão (e é a experiência secundária que se pode ter da morte).
O ponto alto deste capítulo é a relação da experiência secundária da morte como uma experiência banal e cotidiana (e que produz insegurança), já o exemplo (incrível) de Bauman são os reality show, como o Big Brother, em que os participantes tem como pressuposto a exclusão. Eles precisam quebrar os relacionamento em algum momento, pois só um saíra vencedor. O Big Brother, sendo um produto cultural, é também parte de nossa sociedade e nele é possível enxergar um pouco de sua lógica.
A liquidez moderna resulta em uma infinidade de experiências secundárias da morte, de exclusão e, portanto, na construção cotidiana e tijolo por tijolo de uma insegurança estrutural. Insegurança essa, que promove a criação e a utilização de técnicas e tecnologias para a proteção.
O papel da mídia também se mostra importantíssimo por ser aquilo que espalha o medo. O medo não é mais o que se escuta nos contos, nos mitos, nas reuniões de família, nas agremiações e etc e etc. Ela é vista cotidianamente pela televisão, pelos jornais, pela internet e etc e etc.
Bauman cita a Al-Qaeda. Antes do 11 de setembro, eram alguma coisa? E depois?
A responsabilidade
Uma grande sacada está na análise da responsabilidade humana por seus problemas. Bauman verifica que, a partir de Rousseau, a posição da humanidade em torno dos desastres naturais se modificou. Os desastres naturais, únicos que poderiam escapar da responsabilidade humana e serem imputados aos deuses, ao acaso e etc, acabam tendo o foco modificado. Rousseau diz que o desastre natural ocorrido em Lisboa (e que vitimou milhares), não pode ser tido como algo “que acontece”, mas sim como a falta de planejamento das pessoas que moravam nos locais em perigo. O desastre acontece, mas as pessoas podem evitá-lo.
O que ele quer dizer com isso? Ao traçar essa divisão entre o momento em que a responsabilidade não pode ser evitada, ele consegue argumentar que, em um sistema complexo e global, em uma rede tão interligada, não há como não ter responsabilidade sobre seus próprios atos e sobre os seus resultados macro. O micro é a engrenagem do macro. É impossível retirar o corpo da jogada.
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