Educação e Direitos Humanos

“A literatura não tem de partir dos clássicos” por Gabriela Rodella

Há mais de dez anos, ao mediar uma oficina de leitura e escrita, um voraz leitor de Harry Potter me perguntou: “Qual é o autor menos chato: Machado de Assis ou José de Alencar?” A questão me intrigou: o que acontecia nas aulas de literatura daqueles estudantes para que os dois autores fossem considerados “chatos”? Durante oito anos investiguei, por meio de questionários e entrevistas com mais de 80 professores e 290 alunos, suas práticas de leitura literária.

O cenário é preocupante. Na maioria das aulas, o trabalho com o texto é substituído pela memorização dos períodos históricos literários e das características de época. Além disso, a leitura dos clássicos, difícil sem uma mediação adequada, dá lugar à leitura de resumos, que obviamente não dão conta dos romances estudados.

Por outro lado, a pesquisa constatou que os alunos leem! Talvez não aquilo que seus professores gostariam, mas o que lhes interessa: livros de aventura, cheios de ação, que dão origem a seriados, filmes e videogames e livros românticos, que as meninas devoram rapidamente. Essa “literatura de entretenimento” fica fora da sala de aula, sem direito a discussão ou reflexão.

Um primeiro passo para formar leitores críticos seria trazer a literatura de entretenimento para dentro da sala de aula. Trabalhar com o relato dessas leituras, debater a estrutura das narrativas, discutir seu apelo e sua recepção. É preciso partir do que os alunos leem para construir um repertório em comum.

Depois disso, o segundo passo seria tomar espaço durante as aulas de português para a leitura de textos literários do cânone escolar. Ao contrário do que pensam muitos professores, ler em sala não significa “perda de tempo”. Diversas pesquisas indicam que a prática da leitura — tanto a conjunta, em voz alta, como a silenciosa e solitária — incentivam a formação de jovens leitores. Quando professor e alunos planejam e preparam a leitura de um livro, desvendando um texto, uma interpretação coletiva é construída e uma comunidade de leitores pode surgir. Essas comunidades são a base para o alargamento dos horizontes de seus integrantes. Talvez aí Machado e Alencar possam deixar de ser “chatos”…

Ao pensar sobre o ensino como uma prática da leitura literária, poderemos garantir a nossos alunos uma porta de entrada para a leitura de textos mais complexos e para essa nossa grande herança, o mundo da cultura escrita.

* Gabriela Rodella é Doutora em Educação pela USP e autora da tese: “As práticas de leitura literária de adolescentes e a escola: tensões e influências” (2013). Disponível no link. (acessado em 20.3.2017)

Fonte: revista Galileu

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