Literatura

“Se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma”, por Fernando Pessoa

Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas há também a erudição da sensibilidade.

A erudição da sensibilidade nada tem a ver com a experiência da vida. A experiência da vida na ensina, como a história nada informa. A verdadeira experiência consiste em restringir o contato com a realidade e aumentar a análise desse contato. Assim, a sensibilidade se alarga e se aprofunda, porque em nós está tudo; basta que procuremos e o saibamos procurar.

Que é viajar e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vê-lo em Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tê-la saído de Lisboa até Benfica, e tê-lamais intensamente do que quem vá de Lisboa à China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. “Qualquer estrada”, disse Carlyle, “até essa estrada de Entepfuhl, te leva até ao fim do mundo.” Mas a estrada de Entefuhl, se for seguida em todas, e até ao fim, volta a Entepfhl; de modo que Entepfuhl, onde já estávamos, é aquele mesmo fim do mundo que íamos buscar.

Condillac começa o seu livro célebre, “Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações”. Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos. As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo deus delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Não é nenhuma das sete partidas do mundo aquela que me interesssa e posso verdadeiramente ver; a oitava partida é a que percorro e é minha.

Quem cruzou todos os mares cruzou somente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares que todos. Já vi mais montanhas que as que há na terra. Passei já por cidades mais que as existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluíram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a cópia débil do que já vira sem viajar.

Nos países que os outros visitam, visitam-nos anônimos e peregrinos. Nos países que tenho visitado, tenho sido não só o prazer o escolhido do viajante incógnito, mas a majestade do Rei que ali reina, e o povo cujo uso ali habita, e a historia inteira daquela nação e das outras. As mesmas paisagens, as mesmas casas eu as vi porque as fui, feitas em Deus com a substância da minha imaginação.

Trecho do “Livro do Desassossego” – pág. 155

Fernando Pessoa

Fernando Pessoa foi um dos mais importantes escritores e poetas do modernismo em Portugal. Nasceu em 13 de junho de 1888 na cidade de Lisboa (Portugal) e morreu, na mesma cidade, em 30 de novembro de 1935. É mundialmente conhecido como poeta dos heterônimos.

Recent Posts

‘Parecia uma bomba’: Coxinha explode em cliente segundos depois dele comprar salgado em bar – veja o vídeo

Uma cena no mínimo inusitada aconteceu em um bar de Curitiba na última sexta-feira (13),…

3 minutos ago

3 minisséries da Netflix para assistir em dezembro e buscar inspiração para 2025

Dezembro chegou, e com ele aquele clima de reflexão sobre o ano que passou e…

9 minutos ago

5 filmes estreantes na Netflix em dezembro para assistir com quem você gosta

Dezembro chegou com aquele clima de férias, e nada melhor do que aproveitar para maratonar…

27 minutos ago

Policial aposentado encontra tesouro de músicas inéditas de Michael Jackson em depósito na Califórnia – veja o que se sabe até agora

Imagine abrir um depósito e dar de cara com fitas inéditas de Michael Jackson?! Foi…

2 dias ago

Irmãs anunciam gravidez ao mesmo tempo e emocionam os pais com ‘surpresa em dobro’ – Veja o vídeo

Amanda Levi, 23, e Hannah Knoppel, 21, pegaram seus pais de surpresa ao revelar, juntas,…

2 dias ago

Jovem que perdeu os 2 braços em um acidente conseguiu reimplantá-los após ligar para hospital usando um lápis

Uma história de resiliência e coragem marcou a Dakota do Norte em 1992, quando John…

2 dias ago