“Resistência de um grupo ou população à introdução e disseminação de um agente infeccioso (…) baseada na elevada proporção de indivíduos imunes, entre os membros desse grupo ou população, e na uniforme distribuição desses indivíduos imunes”. Em uma simples busca no site do Ministério da Saúde, a definição da expressão “imunidade de rebanho” parece não dar conta da complexidade que ela significa.
Muito presente em notícias que circularam no país nos últimos meses, a expressão imunidade de rebanho dividiu pesquisadores sobre seus efeitos e sobre as reais possibilidades de serem alcançadas em relação à Covid-19 em cidades como Manaus e estados como Santa Catarina, em que houve alta exposição da população ao novo coronavírus.
A reportagem é de Viviane Tavares, publicada por EcoDebate, 06-11-2020.
Para a pesquisadora da Fiocruz Bahia – IGM (Instituto Gonçalo Moniz) e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Viviane Boaventura, a divergência já começa pelo termo, que foi utilizado popularmente mas teve sua origem quando as pesquisas ainda eram realizadas em animais. “Ele é cunhado, na verdade, inadequadamente, porque não se trata de rebanho, são seres humanos. Utilizou-se [esse termo] baseado em trabalhos feitos em animais e acabou ficando. Mas o correto seria a gente chamar de imunidade comunitária ou coletiva”, explica.
Mas, afinal, o que isso significa? Imunidade de rebanho é uma expressão utilizada para definir o processo a partir do qual a cadeia de transmissão de uma doença é bloqueada ao atingir um número considerável de pessoas. Esse bloqueio pode ser alcançado de duas formas: por meio de vacina ou pela exposição natural ao vírus.
Os pesquisadores Caroline Dutra Lacerda e Hernan Chaimovich, ambos do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), explicam no artigo ‘O que é imunidade de rebanho e quais as implicações?’ que o conceito descreve uma situação em que a cadeia de infecção é bloqueada. “Isto é, a doença para de se alastrar, pois uma porcentagem de indivíduos, numa população definida, adquire imunidade a essa infecção e assim protege os que ainda não têm imunidade de serem infectados”.
Até aí parece uma equação simples: é só entrar em contato com o vírus, produzir anticorpo, não se reinfectar e, a partir daí, não transmitir e pronto. No entanto, começam a entrar as variáveis. E o novo coronavírus, causador da Covid-19, traz um conjunto delas. É preciso levar em conta, por exemplo, o grau de risco provocado pela exposição da população ao vírus, a taxa de reinfecção, a aferição de produção de anticorpo adequado, entre outros fatores.
O reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador da pesquisa Epicovid – que mapeia a velocidade de contágio e propõe estratégias para o enfrentamento da doença –, afirma que a identificação de anticorpo é a forma mais precisa de se verificar a eficácia da estratégia, mas isso não funciona igualmente para todas as doenças. “Há doenças em que a qualquer momento você pode testar uma amostra da população, e se 60%, 70% estiverem com anticorpo, pode ter um grau de confiança de que se atingiu a imunidade de rebanho, porque é possível identificar o quanto de pessoas dentro daquela comunidade está protegida contra o vírus”, explica e exemplifica: “No caso da Covid-19, é muito mais difícil, porque a literatura recente mostra que os anticorpos permanecem em condições detectáveis no organismo por um período mais curto. Para se estimar se uma população atingiu ou não a imunidade de rebanho, tem que se fazer uma conta que é um pouco mais complicada, tem que acompanhar o número diário de casos, para tentar ter uma estimativa do quão ativo está o vírus em determinado momento, que, no caso do novo coronavírus, é um espaço curto de tempo”.
Viviane Boaventura reforça essa conclusão quando indica as variáveis para decretar a imunidade de rebanho a partir do exemplo do sarampo, doença em que o Brasil alcançou a tal imunidade por meio vacinal, mas que já está ameaçada pela queda do número de pessoas vacinadas. “O sarampo é uma doença altamente transmissível, portanto, o nível que a gente precisa de proteção é muito alto, cerca de 95% da população. Por outro lado, é uma doença que, uma vez que você tenha tido a infecção, ou caso a pessoa tenha tomado a vacina, ela desenvolve uma memória e a proteção é duradoura, explica.
No entanto, para a Covid-19 essa mesma proporção e experiência não pode ser aplicada, explica Viviane: “A gente também precisa olhar outros coronavírus que causam gripe comum, cujos anticorpos também não duram muito tempo. Portanto, por conta desse tempo de duração curto, adquirir essa imunidade de rebanho para proteger uma comunidade e evitar a circulação do vírus é muito difícil em termos de infecção natural. Nesses casos, o corpo fica com a memória de proteção por um período muito curto e vem a reinfecção. É isso que estamos observando. Isso não pode ser considerado imunidade de rebanho”, analisa.
Para Lely Guzmán, coordenadora interina da Unidade de Família, Gênero e Curso de Vida do escritório da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), não existe imunidade de rebanho no caso de vírus que podem infectar as pessoas várias vezes. “No caso da Covid-19, não há evidências até o momento de que as pessoas que se recuperaram da doença e têm anticorpos estejam protegidas contra uma segunda infecção. É esperado que a maioria dos indivíduos infectados desenvolva uma resposta de anticorpos que forneça algum nível de proteção. O que ainda não se sabe é o nível de proteção ou quanto tempo vai durar. A OMS está trabalhando com cientistas de todo o mundo para entender melhor a resposta do corpo à infecção por Covid-19”, informa.
Conclui-se, portanto, que o fato de grande parte da população ter acesso ao vírus não basta para que se alcance a imunidade coletiva. “Toda a população já teve acesso ao vírus da gripe, por exemplo, e não tem imunidade de rebanho. Porque há mutação do vírus, a quantidade de anticorpo não é tão duradoura e sempre tem gente para ser infectado por gripe. A imunidade de rebanho é atingida quando basicamente não tem mais gente para ser infectada. E isso é difícil no caso dessas doenças nas quais os anticorpos não têm uma duração tão longa”, explica Pedro Hallal.
Em geral, há duas formas que andam combinadas para detectar a imunização de rebanho: os testes de anticorpos e a imunização celular. “Assim como a vacina, na infecção natural tem formas de a gente detectar se a pessoa teve ou não essa exposição e se produziu essas substâncias capazes de se proteger. São sempre dois braços da defesa: o que produz anticorpo e o que coordena a célula. Avaliar esse braço que produz anticorpo é o mais fácil. Isso a gente tem em teste laboratorial, inclusive para a Covid-19. Mas o olhar apenas à quantidade de anticorpo para estabelecer a imunidade é limitado. E hoje ainda não existe teste que a gente possa fazer em um laboratório ou na beira do leito para olhar como essas células estão funcionando, só existem testes em desenvolvimento”, detalha Viviane.
Imunidade coletiva é com vacina
Todos os pesquisadores ouvidos para esta reportagem explicam que a forma mais segura e controlada de atingir a imunidade de rebanho é por meio da vacina. Ainda assim, Viviane informa que, para atingi-la, o número mínimo de pessoas que precisam ser imunizadas ainda está em aberto. Nos primeiros estudos eram apontados cerca de 70% de pessoas vacinadas, hoje esse índice gira em torno de 60%. “Entretanto, é preciso considerar que esse número tenha que ser de pessoas efetivamente protegidas, que não se reinfectam, ou que não percam ao longo do tempo essa memória imunológica. Porque quando isso acontece essa imunidade de rebanho vai por água abaixo”, avalia e acrescenta: “A nossa capacidade de vacinar pessoas, de fazer grandes campanhas nacionais, de fazer essas vacinas chegarem a diversos lugares do Brasil e em um período muito curto de tempo, em lugares longínquos é referência mundial. O Sistema Único de Saúde é o nosso grande aliado. Esse será um dos maiores desafios já enfrentados na história da saúde brasileira, chegar com a vacinação simultânea a todos os cantos do país, para toda a população”.
Viviane explica que, quando uma vacina é preparada, ela deve se parecer o máximo possível com uma infecção natural, no entanto, sem causar os desdobramentos da doença, de modo que nosso sistema ‘encare’ a defesa de maneira mais controlada. “É um desafio montar uma resposta de defesa à altura, adequada e segura”, avalia a pesquisadora, que compara: “A grande questão é que quando você pensa em uma imunidade comunitária baseada em uma infeção natural, há um impacto social para a saúde pública da população, em termos de mortalidade e de morbidade da doença. É colocar em risco um grande contingente de pessoas. É inadmissível a gente pensar em imunidade comunitária por infecção natural para a Covid-19, por exemplo”.
Hallal indica que o primeiro critério para se definir se a estratégia de alcançar a imunidade deve se dar por meio de vacina ou de forma natural deve ser a informação sobre a mortalidade da doença e seu grau de morbidade. “No caso da Covid-19, a taxa de mortalidade é um dos critérios que torna impensável a possibilidade de ter [a imunidade natural] como estratégia. E ainda assim, se levarmos em consideração que a doença é capaz de induzir uma proteção de curto prazo, a imunidade natural pode nunca vir. Ou seja, você está sacrificando a população para não ter resultados satisfatórios”, conclui.
O exemplo mais recente que pode ilustrar a avaliação de Hallal é o caso da Suécia, que manteve em plena pandemia o comércio e instituições de ensino abertos e isolou apenas a população de risco. Como resultado, as taxas de contágio no país foram as mais altas da região nórdica da Europa, o que, em consequência, poderia levar a uma imunidade de rebanho de maneira mais rápida. No entanto, em julho, o estudo (Managing Coronavirus Disease 2019 Spread With Voluntary Public Health Measures: Sweden as a Case Study for Pandemic Control), publicado na revista Clinical Infectious Diseases, mostrou que o país teve um maior número de mortes e uma demanda maior no sistema de saúde comparado com os demais países da região, além de não atingir seu objetivo. Anders Tegnell, epidemiologista-chefe do governo sueco, voltou atrás da estratégia e, em junho, admitiu que as medidas deveriam ter sido mais “restritivas”.
No caso brasileiro, explica Lely Guzmán, não há como afirmar que se atingiu a imunidade de rebanho em determinados municípios, como vem sendo debatido, principalmente, em relação à situação de Manaus. Isso porque, além de toda dificuldade de aferição, ela enfatiza que o vírus não respeita fronteiras e as pessoas circulam entre os lugares. “Para afirmar isso, depende de cada doença e situação. A solidariedade e a cooperação entre municípios, estados e países é fundamental e beneficia a todos. No caso do novo coronavírus não deve ser diferente”.
Do site: Instituto Humanitas Unisinos
Imagem de Omni Matryx por Pixabay
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