“O fracasso da educação brasileira é justamente porque nunca se aplicou Paulo Freire”

O professor José Eustáquio Ro­mão tem muitas histórias para contar. Basta dizer que ele acompanhou de perto o pedagogo brasileiro Paulo Freire por 11 anos, de 1986 até 1997, quando morreu o autor de “Pedagogia do Oprimido”, considerado por muitos um dos maiores pensadores da educação no mundo. Graduado em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e com doutorado em His­tó­ria Social pela Universidade de São Paulo (USP), Romão trabalhou com Freire, quando este foi secretário de Educação da Prefeitura de São Paulo, durante a gestão de Luiza Erundina [eleita pelo PT e prefeita de 1989 a 1992].

José Eustáquio Romão é diretor e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho (Uninove), de São Paulo, e também integra o Conselho Nacional de Educação, na Câmara de Educação Superior. Ele tenta efetivar a obra de seu mestre nessa esfera do ensino, mas faz uma análise contundente do quadro da educação: “No Brasil, a carreira do magistério está vinculada ao grau que você leciona. Então, quem leciona na educação infantil tem um salário pequeno. Ora, isso é genocídio pedagógico. Nos países em que as coisas funcionam melhor nesse aspecto, a carreira está vinculada à titulação”, explica.

Diretor-fundador do Instituto Paulo Freire, onde cuida das relações internacionais, Romão continua divulgando a obra do educador pelo mundo. “Hoje, uma pesquisa dos norte-americanos comprova que ‘Pedagogia do Oprimido’ é o livro mais lido no mundo na área das ciências sociais”, exalta. Mas qual é o objetivo de propagar os ideais de Freire para a educação no mundo de hoje? “Tentamos fazer o que ele mesmo sempre falou: tentamos reinventá-lo e não repeti-lo.”

Marcos Nunes Carreiro — Como está sendo feita o que o sr. chama de “reinvenção” de Paulo Freire para a educação superior?
Primeiramente, Paulo Freire foi, por lei, transformado em patrono da educação brasileira. Por isso mesmo, em nosso entendimento o “ethos” freiriano tem de estar desde a educação infantil até a pós-graduação. Paulo Freire tornou-se conhecido no mundo inteiro pela alfabetização de adultos e estamos tentando reinventá-lo na educação superior. Tanto que, quando lançaram minha candidatura para o Conselho Nacio­nal de Educação (CNE), me perguntaram se eu iria para a Câmara de Educação Básica, porque fui secretário municipal de Educação, secretário nacional da Undime [União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação], mas eu preferi ir para a Câmara de Educação Superior. Também trabalho dirigindo um programa de pós-graduação, doutorado e mestrado, em Educação.

Pesquisamos durante uns 15 anos até que conseguimos localizar os manuscritos originais do livro “Pedagogia do Oprimido” e entender por que essa obra é tão lida no mundo. A versão que estamos vendo foi uma versão censurada pelos norte-americanos. Paulo Freire estava vivendo no exílio em Santiago do Chile, concluindo o “Pedagogia do Oprimido”, quando foi convidado a dar aulas na Universidade de Har­vard. Os americanos pegaram os originais datilografados e publicaram o livro censurando-o. Por exemplo, o capítulo sobre a teoria da ação revolucionária não existe em nenhuma edição no mundo. E veja que é o livro mais traduzido nas ciências sociais em todo o mundo.

Em 2013, resgatamos os originais manuscritos, que estavam com um ministro do então presidente Salva­dor Allende — quando Paulo Freire deixou o Chile, quis dar um presente ao ministro e resolveu passar-lhe o livro escrito à mão. Esse manuscrito é o que vai ficar na Biblioteca Nacional. Nele, vemos que a teoria de Paulo Freire se aplica a qualquer grau da educação, vemos a real importância de seu trabalho. Ele criou um método de alfabetização de adultos, mas a obra dele não se resume a isso.

Estamos agora pesquisando em todas as universidades do mundo — são 36 institutos Paulo Freire espalhados pelo mundo — e encontramos gente trabalhando em comunidades freirianas em todo lugar. Encontrei seu método sendo desenvolvido na Mongólia, na Coreia, na Finlândia, na China. No ano passado, fui trabalhar com a Academia de Ciências da China. Lá, queriam que decifrássemos algumas expressões incompreensíveis a eles, entender os fundamentos freirianos sobre o desenvolvimento sustentável. Eu confesso que, particularmente, não tinha enxergado essa teoria em Paulo Freire, como ele não escreveu nada também sobre educação superior. Pelo menos não se tem notícias disso, com exceção de uma entrevista de quatro páginas em que ele dá opiniões sobre o papel das universidades católicas — ele era católico, inclusive tem uma frase interessante e famosa dele, barbudo, em meio a outros dois barbudos, Jesus Cristo e Karl Marx.

Mas descobrimos recentemente que ele ministrou um seminário no México, na Universidade Autônoma do México, então a maior universidade pública do mundo, com quase 1 milhão de alunos — agora tem uma no Brasil, a maior do mundo, com 1,2 milhão de alunos — e ele, numa roda de intelectuais do mundo inteiro, durante uma semana discutiu o papel do ensino superior e dos intelectuais. Resgatamos as gravações disso, estamos transcrevendo e vamos tentar ver o que ele pensava sobre ensino superior, embora sua obra nos permita repensar a universidade, essa instituição quase milenar.

Cezar Santos — O sr. falou que os chineses precisaram que se explicasse a eles os conceitos freirianos. Mas há críticas de que Paulo Freire precisa ser traduzido até para os brasileiros, porque o livro “Peda­gogia do Oprimido” é simplesmente confuso, ilegível em muitos trechos, com muitas sentenças que não fazem ne­nhum sentido, inclusive com excesso de neologismos, repetições e coisas assim.
Sim, você tem razão, no Brasil há uma crítica muito forte à obra do Paulo Freire. Mas, geralmente, os intelectuais têm muito medo dele e por isso o criticam, dizendo que ele era um gênio intuitivo, mas não científico. Essa é a primeira crítica, que é uma maneira de desqualificá-lo. Durante muito tempo pensei que isso se devia ao fato de que ele não tinha títulos. Freire nunca fez pedagogia, nunca fez mestrado nem doutorado. Fez um curso de Direito à noite, mas jamais exerceu a profissão; desistiu na primeira causa e se dedicou à educação. Mas os americanos, que são muito espertos e não se baseiam em títulos, mas no conteúdo da obra, o convidaram a dar aulas em Harvard. Ele passou um ano em Harvard dando aulas.

É verdade que Freire criou muitos neologismos? Sim, é verdade. Um doutorando meu fez, há três anos, uma tese sobre o neologismo em Paulo Freire. Ele pesquisou o porquê de isso ocorrer. Em sua tese, esse pesquisador sustenta que na língua portuguesa, e em qualquer língua do mundo, há alguns pensamentos ainda sem palavras para traduzi-los. Então, é preciso inventar essas palavras, porque as línguas são dinâmicas. Por exemplo, ensino e aprendizagem são um fenômeno só, mas a língua portuguesa não tem uma palavra apenas para dizer isso; as línguas eslavas têm. Em russo, existe uma palavra que quer dizer, ao mesmo tempo, “ensinar e aprender”.

Paulo Freire era um pesquisador de etimologia das palavras, um verdadeiro linguista. Ele então criou, na “Pedagogia do Oprimido”, a palavra “dodiscência”, que é a docência e a discência ao mesmo tempo, quem ensina aprende e quem aprende ensina, que é um dos princípios de Paulo Freire.

Ele criou muitos neologismos, mesmo. Mas eu acho que a rejeição a ele não é por causa disso. É, primeiramente, porque ele ameaça sobre o território dos intelectuais. Também não é por causa de falta de títulos, não, até porque ele recebeu 36 títulos de doutor “honoris causa” pelas maiores universidades do mundo. Hoje, estou convencido de que a rejeição é porque ele diz que a ciência só vai avançar — e a humanidade com ela — quando os oprimidos fizerem ciência. Isso, sim, é uma ameaça ao intelectual. O segundo fator de rejeição é que, ao pregar, em qualquer grau de ensino, que o currículo não pode ser “pré-dado”, mas tem de ser construído juntamente entre educador e educando, a partir desse momento os teóricos de currículo raciocinaram que o conceito freiriano de educação não tem currículo. Ora, há currículo, só que não é “pré-dado”, mas, sim, fabricado no processo de aprendizado.

E a terceira rejeição é das elites. Nas passeatas contra o governo Dilma, apareceram alguns cartazes contra Paulo Freire, algo como “chega de Paulo Freire!”. Não sei ao que essas pessoas estavam se referindo, porque Paulo Freire nunca foi aplicado na educação brasileira. O fracasso da educação brasileira atual é justamente porque não se aplica Paulo Freire. Estive em alguns dos países classificados pela Unesco como os melhores sistemas educacionais do mundo e eles estão aplicando Paulo Freire.

Cezar Santos — Quais, por exemplo?
Na Coreia do Sul, na Finlândia, nos Estados Unidos, também. Paulo Freire é hoje o pensador da educação mais estudado nos Estados Unidos. Aqui, nós não o aplicamos. Fomos ver a experiência que ele, com um grupo de estudantes, aplicou em Angicos (RN), há mais de 50 anos. Freire e um grupo de estudantes começaram com uma turma de 20 e poucos camponeses na alfabetização e terminaram com mais de 400. Todos aptos a ler, isso em 40 horas de trabalho. Não foi milagre nem varinha de condão, foi coisa muito simples. Voltamos lá e fomos conversar com gente que foi alfabetizada naquela época, para ver se tinha havido regressão, e ouvimos também estudantes que ajudaram Freire naquela experiência.

Queríamos entender. E não havia mágica. E aquilo impressionou tanto que o presidente da República [na época, João Goulart] foi ajudar a entregar os certificados e convidou Paulo Freire para criar 30 mil ciclos de cultura no País, o que não aconteceu porque veio o golpe militar e ele foi preso. Por isso, estou convencido: se aplicarmos o método freiriano, acabamos com o analfabetismo no Brasil em menos de um ano. Por isso, não entendo quando aparece faixa “Fora Paulo Freire!”: fora de quê, se ele sempre esteve fora? (risos)

Marcos Nunes Carreiro — Obje­tiva­mente, como se aplicaria o método freiriano no Brasil?
É muito simples, basta adotá-lo como uma política pública. Hoje temos, mais ou menos, de 12 mi­lhões a 13 milhões de analfabetos, segundo a Unesco, para a qual analfabeto é a pessoa que, com 15 anos ou mais, não consegue ler e escrever na língua materna. O método de alfabetização de Paulo Freire — que é apenas um aspecto menor, pontual, de sua obra, embora a componha e seja uma técnica bastante funcional — é muito simples: as pessoas só aprendem aquilo que querem aprender, quando estiverem motivadas. Por isso mesmo, o currículo não pode ser pré-dado, mas construído junto, a partir das palavras geradoras, dos sistemas geradores e dos contextos geradores. A aula precisa ser substituída pelo que chamamos de ciclo de cultura, que é precedido de uma pesquisa na região dos alfabetizandos. Se tudo isso for bem feito, em 40 horas a pessoa vai ler — não só seu nome, mas ler, de verdade, porque passa por um “clique”. Quem trabalha com alfabetização vai saber o que vou dizer agora: há um período em que a pessoa não entende a lógica da língua; isso segue até que surja um “ah!”, que é o estalo do aprendizado.

Um exemplo: Paulo Freire trabalhou com os candangos que estavam construindo Brasília. A primeira palavra geradora que apareceu no processo com eles foi “tijolo”. O grupo a elegeu depois de discutir. Freire ainda trabalha com uma técnica da época, que era a da “silabação”. Então, pegou um tijolo e o dividiu em três pedaços, falando “Vocês precisam partir tijolos para fazer a amarração da parede. Então, vamos partir o tijolo em três pedaços”. Pegou uma folha de papel e construiu as três famílias silábicas: ta-te-“ti”-to-tu, ja-je-ji-“jo”-ju e la-le-li-“lo”-lu.

Depois, dividiu todas elas pediu aos alfabetizandos e alfabetizandas que estavam lá para combinar aqueles “pedaços do tijolo” e formar novas palavras. Surgiram “jiló”, “lateja” etc.
Mas, então, teve um senhor — ou uma senhora — mais experiente que mostrou não mais uma palavra, mas uma frase: “Tu já lê”. Estava alfabetizado. A partir daí, Paulo Freire foi se aprofundar na lógica. Ao contrário do que se pensa, ele não tinha um trabalho meramente intuitivo. Para escrever um parágrafo, às vezes ele levava uma semana, pesquisando etimologia, indo atrás dos grandes pensadores e fazendo investigações. Basta consultar a biblioteca dele no Instituto Paulo Freire. Todos os seus livros cheios de anotações e lembretes de verificações que deveria fazer — e, se você for ver o livro anotado, vai constatar que ele fez a devida verificação. Enfim, Freire fez sua própria universidade. Aliás, é como Gorki [escritor, romancista, dramaturgo, contista e ativista político russo] dizia: “As minhas universidades nem sempre são as universidades da instituição”. Mas Paulo Freire era sempre um homem muito rigoroso e cuidadoso com seus estudos. Assim, ele acabou por descobrir as chaves da alfabetização, o “como” as pessoas aprendem. E escreveu então o método, que está não na “Peda­go­gia do Oprimido”, mas no livro “E­ducação como Prática da Liber­da­de”. É o último capítulo do apêndice.

Cezar Santos — Quer dizer que o sistema de Freire é um sistema lógico?
Sim, totalmente científico.

Cezar Santos — E dá para separar o pedagógico do político no ensino freiriano?
Não. Aliás, não dá para separar isso em ensino algum. Os que dizem que não se pode misturar política com educação estão politizando a questão ao usar esse argumento. É preciso fazer um argumento político para negar. Paulo Freire dizia que, em toda relação humana — relação afetiva, econômica, política etc. — há sempre duas dimensões — e isso mostra a genialidade dele, a meu ver. Vamos tomar o caso da educação. Há uma primeira dimensão, política, e outra gnosiológica, de conhecimento — se existe a educação é para construir conhecimento.

Ocorre que, para Freire, a dimensão política sustenta e precede a dimensão gnosiológica. Eu mesmo, durante muito tempo, duvidei desse princípio. Freire era categórico ao dizer que uma pessoa precisava antes ser alfabetizada politicamente para, depois, ser alfabetizada linguisticamente. Ora, eu pensava, a dona Iná Nogueira, quando me alfabetizou aos 7 anos de idade, era na cartilha mesmo, “ba-be-bi-bo-bu”. E assim eu aprendi a escrever.

Ou seja, se eu não fui alfabetizado por ela politicamente, ela devia ser uma mulher conservadora ou alienada. Era apenas uma professorinha de Patos de Minas (MG). E eu brincava com Paulo Freire, provocando-o: “Nem o sr. foi alfabetizado politicamente primeiro, para depois ser alfabetizado em português, não tinha escola freiriana na sua época.” (risos)
Paulo Freire, sempre do jeito dele de falar, indiretamente, me respondia sempre com outras perguntas. “Você tem certeza que foi alfabetizado na escola?”, e nos colocava para pensar até não poder mais. Mas ele nunca tinha me convencido disso. Para ele, a dimensão política se dá pela leitura crítica do mundo. Uma criança vai ler criticamente o mundo? Ele acha que sim e, enquanto não ler criticamente, não vai aprender. Pode decorar, mas não aprender.

Então, para adquirir a dimensão gnosiológica, isso ocorre a leitura da palavra. Aliás, em inglês dá um trocadinho legal que não se realiza em português. Quando a obra dele foi traduzida, na expressão “leitura do mundo”, “mundo” é “world”; e em “leitura da palavra”, “palavra” é “word”. Só basta tirar o “L”. Portanto, a “leitura do mundo” sustenta a “leitura da palavra”. Como disse, ele nunca me convenceu disso.

Para concluir, vou contar uma história que aconteceu comigo. Meu neto me pediu para levá-lo ao McDonald’s e eu resisti, pois minha filha não permite que ele coma lá. Ele fez diversas chantagens, com seus 3 ou 4 anos. Fez tanta chantagem emocional que acabei levando — vocês sabem como é um avô para um neto. E sabem como é o drive-thru do McDonald’s: você entra em uma fila e, de uma janela, a atendente pergunta qual seu pedido; você o paga, recebendo-o em outra janela. É uma produção fordista de sanduíches. Antes de chegarmos à primeira janela, havia uma fila de carros e outdoors espalhados por todo o pátio daquela lanchonete de Juiz de Fora. E o meu neto me disse “vô, naquela placa estava escrito ‘promoção’”. Eu o olhei e estava escrito isso, de fato. Ele vive comigo e tinha sido matriculado em uma escola que não era para alfabetizar e eu me perguntei: “Co­mo é que foi isso?”. Então, eu fiz alguns testes com ele para saber se, de fato, ele estava lendo.

“Promoção” não é uma palavra fácil. Ela tem cedilha e til, mais de duas sílabas. Então, fiquei espantado. Resolvi que na segunda-feira, eu iria até à escola conversar com as professoras para saber se o estavam alfabetizando, pois sempre dá problema quando há alfabetização precoce, temos exemplo na família. Mas, enfim, ele estava lendo, mesmo. Quando chegamos à terceira janela para pegar o sanduíche, e estávamos apenas eu e ele, ele virou para mim e disse: “Vô, e o Senhor Incrível”? Eu disse: “Quem?”. “O Senhor Incrível”. E, então, perguntei ao rapaz da lanchonete: “E o Senhor Incrível?” (risos). E ele me disse, “olha, na promoção não tem brinde”. Mas antes, quando estávamos lá atrás na fila, meu neto me perguntou “o que é promoção”. Eu pensei, como explicar a uma criança a ilusão mercantil-capitalista? É uma coisa meio complicada. E eu disse então que ele iria receber tudo o que tinha direito e eu pagaria menos por isso. Ele disse “Ô, vô, promoção é legal então, né?”. Eu acenei que sim e avançamos.

Na última janela, pegamos o sanduíche e não tinha o Senhor Incrível. A alegria dele, na primeira janela, eu li como alienação. Na última, foi a hora de conscientizá-lo. Ele já falou chorando: “Promoção não é legal, vô…”. Eu acabei pagando a diferença — era um bonequinho de brinde, e ele estava mais interessado no boneco do que no sanduíche.

Fiquei olhando pelo retrovisor sua alegria e, na volta para casa, a ficha do que Paulo Freire dizia foi caindo para mim: a dimensão política precede a dimensão gnosiológica. Quando entramos no McDonald’s ele viu “promoção”, mas não leu “promoção”. Ele decodificou linguisticamente o termo promoção. Tanto que me perguntou o que era aquilo. Mas, enquanto não passou pela leitura crítica e pela experiência do mundo, ele não incorporou o exato conceito de promoção. Nós também aprendemos assim. Apren­demos que ácido mais base gera sal e água com dispêndio de oxigênio, mas, enquanto não se enxerga isso, na realidade você não aprende. Pode até decorar, mas não aprende. É o princípio freiriano da aprendizagem, seja na alfabetização ou na mais alta forma de graduação.

Marcos Nunes Carreiro — Há um artigo do sr., intitulado “Escola Cidadã no Século 21”, em que fala algumas coisas a respeito de Paulo Freire. Lá mesmo, há uma pequena crítica que faz ao termo “competência”, isso com relação ao termo “aprender”, que era uma palavra de que Paulo Freire gostava muito. Temos hoje o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que é o maior exame para verificar o desempenho dos alunos assim que eles saem da educação básica para a superior e que utiliza o sistema de competências. Na visão do sr., existe uma falha no Enem? Como o sr. o analisa? Afinal, é um exame muito importante para o País.
Competência existe, mas a palavra no Brasil está muito marcada, o que pode gerar discriminação e exclusão. Talvez fosse melhor usar outra palavra para não gerar distorções, pois quando se fala “competência”, imagina-se logo seu contrário, que é “incompetência”. É a mesma coisa de “literacia”, termo que estão tentando introduzir — o que já ocorreu em Portugal — no lugar de “alfabetização”. No Brasil, estão traduzindo por “letramento”. Quando falam em “letramento” me dá até um frio na barriga, pois “letrados” e “iletrados” eram uma forma de discriminar, no século 19, as pessoas que não liam, ou as mais simples, mesmo que lessem. Era um critério de discriminação muito ruim. A palavra “letrado” — não quero dizer que ela não exista ou não seja correta —, se você a contextualiza em uma sociedade, ela se torna inconveniente.

Todo termo não existe em tese, mas sim em uma realidade concreta. A mesma coisa digo que acontece com a palavra “competência”. Eu prefiro falar em “capacidades”, mas nada contra que as pessoas tenham que ter “competência” por um desempenho. Como você se referiu ao Enem, o exame, ao meu juízo, foi a pior contribuição que o ministro Fernando Haddad deu à educação brasileira.

“Precisamos desenvolver a cultura da pesquisa”

Frederico Vitor — Por que o sr. diz isso?
Todo ministro comete equívocos. Eu adoro Fernando Haddad, sempre gostei muito dele e mesmo da gestão dele no ministério, mas todo ministro comete um erro grave. E o dele foi esse. O Conselho Regional de Educação trabalhou durante dez anos para elaborar as diretrizes nacionais do ensino médio. Quando isso estava pronto — e o próprio ministro Haddad o publicou, um livrinho que está mofando nos depósitos do Conselho —, vi que era um primor. Digo isso sem ter sido conselheiro na época. No ano em que o iam distribuir nas escolas, Haddad criou o Enem. Com isso, matou as diretrizes do ensino médio, pois agora as escolas se organizam em função do Enem e não mais em função das diretrizes, que a meu ver eram bem melhores.

O Enem tem virtudes, mas tem mais defeitos do que virtudes. Fico com pena, por exemplo, dessa meninada toda que antes fazia um vestibular no final do ensino médio. Agora, tem de fazer um por ano, que se chama Enem. Sem contar que o governo, ao centralizar um exame como esse em um país continental, está sujeito a todo tipo de problema. As fraudes são do Oiapoque ao Chuí. Eu mesmo presenciei uma fraude em São Paulo. O Enem que foi realizado no Mackenzie foi todo fraudado. Não tinha ninguém vigiando as provas. Foi uma confusão dos diabos.

Marcos Nunes Carreiro — Confusão?
Vou lhe dar um dado interessante: como um dos indicadores para avaliar os cursos superiores são os resultados do Enem, tem escola em São Paulo que treina alunos para o Enem. Alguns poucos alunos. E fala para os outros faltarem à prova. Sabotam o exame. Assim, aquela escola é classificada em 1º lugar. As que fazem tudo corretamente, para dar a amostragem certa, ficam lá embaixo na classificação. Por isso, já repensam o modo de fazer.

Uma faculdade goianiense, onde estive para ministrar uma aula inaugural, abriu sua terceira turma de Medicina. Não sou profeta, mas vai acontecer: quando enviarem os alunos do ciclo avaliativo de Medicina para fazer a prova do Enade [Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes], que é outra fraude, eles estarão pensando nas provas de residência. Eles terão cabeça para fazer bem uma prova do Enade? Tanto que nós, do Con­selho, estamos pensando seriamente se usaremos esses indicadores para credenciar ou não uma faculdade, porque são indicadores duvidosos. No Enade, quem termina o curso de Medicina precisa se submeter à prova no momento em que estão pensando na classificação para o período de residência.

Vemos as universidades dizendo que os alunos estão sabotando o Enade, porque não fazem a prova. Ora, não estão sabotando, só estão buscando aquilo que é mais importante para sua vida profissional, que é a aprovação na residência. Nem há como acusar os alunos. Nem tem como usar esse índice para aprovar ou reprovar uma faculdade. Estamos discutindo também, com o Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira], como refazer o instrumento de avaliação, porque esses indicadores — Enade e Enem — não podem ser usados para aprovar ou reprovar instituições.

Frederico Vitor — Paulo Freire diz que ensinar exige pesquisa. Mas nós sabemos que, no Brasil, o fator pesquisa não é levado muito a sério. Como fica a questão?
É muito difícil. Estamos tentando criar a cultura da pesquisa na graduação. O Brasil foi um dos últimos países do mundo a criar uma universidade. A nossa primeira instituição de ensino superior é a Universidade de São Paulo (USP), de 1934. Já havia passado mais da primeira metade do século 20. É uma posição ruim se vemos que, do lado espanhol da América Latina, já havia universidades criadas ainda no século 16, como é o caso do Peru [a primeira universidade da América do Sul é a Universidade Nacional Maior de São Marcos, em Lima, fundada em 1551]. Mas os portugueses não achavam importante ter universidades por aqui. O primeiro curso superior do Brasil é de 1808, quando veio D. João VI e só tivemos a primeira universidade já no século 20.

Ou seja, essa tradição de aprender pesquisando e não repetindo o que já está posto, estamos tentando criar agora. E isso vai levar muito tempo, porque a cultura, inclusive nos cursos superiores, é de disciplina e currículos disciplinares. O Brasil é um dos poucos países do mundo onde todos acham que formar um aluno é dar aula a ele, sendo que, nas maiores universidades do mundo, as aulas são momentos. Em grande parte do tempo, os alunos estão na biblioteca ou nos laboratórios. Ou seja, ele vai à aula para tirar dúvidas, sistematizar seu trabalho, e então volta logo para a biblioteca. No Brasil é uma luta para levar o aluno à biblioteca, ao laboratório ou a outros ambientes onde ele vá construir conhecimento.
Portanto, existe aqui uma cultura e isso vai ser criado de modo devagar por muito tempo. Se alguém vai fazer doutorado, para que precisa cursar disciplinas? Ela precisará é pesquisar e comprovar sua tese, sua pesquisa. Se ele tiver alguma deficiência em determinada área, tudo bem; mas, atualmente, a pessoa entra para fazer doutorado e tem um caminhão de disciplinas antes de qualificar e sobra pouco tempo para fazer a pesquisa.

Cezar Santos — E a questão do currículo nacional? O sr. acha que seria um avanço?
O que estamos discutindo atualmente no Conselho é a Base Nacional Comum para a educação básica. Ela é necessária. Não queremos um currículo mínimo para colocar camisa de força em ninguém, mas algumas diretrizes. Por exemplo, na educação básica, o curso deve ser em língua portuguesa. Agora, tem de aprender espanhol também por causa dos acordos firmados com o Mercosul. Então, algumas orientações devem ser dadas, mas não muitas regulações, porque toda vez que o governo regula muito ninguém cumpre. O País é um cemitério de leis. Fora isso, há as diferenças regionais, que são as riquezas do País. É preciso valorizar a nacionalidade, mas não podemos desprezar as regionalidades.

Cezar Santos — Mas o grande problema é que as crianças saem sem saber ler, escrever e fazer as contas básicas.
Sim e esse é um problema muito fácil de resolver. As crianças só aprendem quando muito motivadas, não adianta. Você pode dar aula para 20 ou 30 crianças em uma sala e apenas uma aprender. Por quê? Porque ela está com uma motivação diferente da dos demais. Então, o papel do professor não é passar conteúdo, mas descobrir os mecanismos pelos quais a pessoa se motiva a aprender. Até porque os meios de comunicação de massa passam muito mais conteúdo do que qualquer escola.

Marcos Nunes Carreiro — Há um ciclo de problemas: as falhas do ensino superior se refletem no ensino básico ou é o contrário?
Esse círculo vicioso precisa ser cortado em algum lugar para que a questão seja resolvida, transformada em círculo virtuoso. É a universidade que forma os professores que dão aula para a educação básica. Mas os professores do ensino superior reclamam que os alunos estão chegando com muitas deficiências. A mesma reclamação é feita pelos professores de ensino médio, que reclamam do ensino fundamental; e assim vamos, até chegar aos bebês. É preciso cortar isso e a universidade é uma das grandes responsáveis.

É claro que temos alguns indicadores para resolver e que são questões de política pública. No Brasil, a carreira do magistério está vinculada ao grau que você leciona. Quem leciona no infantil tem um salário; no ensino fundamental, tem um salário um pouco melhor e isso vai melhorando até chegar à pós-graduação. Nos países em que as coisas funcionam melhor nesse aspecto, a carreira está vinculada à titulação. Então, quem é doutor e quer continuar dando aula para crianças de 3 e 4 anos, continuará ganhando como doutor, e não a miséria que pagam para as professoras que dão aula na educação infantil. Um grupo de crianças é algo complexo. Cuidar de uma sala com 15 crianças com 4 anos de idade é muito mais complicado que uma sala com 50 adultos. E a pobre da professora vai ganhar 600 reais, ou o salário mínimo. Como essa moça terá estímulo para ler, para estudar psicologia evolutiva? E se você marcar a criança negativamente, é algo para o resto da vida.

Ou seja, estamos cometendo um genocídio pedagógico. Então, ou mu­da­mos isso com uma política pública, ou não teremos saída. Ao contrário, o Brasil terá uma economia de primeiro mundo e continuará patinando no terceiro mundo, porque parte da crise é crise mesmo, mas a outra é fabricada. Acabei de ver um estudo em um dos periódicos científicos mais bem avaliados do mundo que mostra: mesmo com a crise, Brasil, China e Índia são os países que, para os próximos dez anos, vão segurar a economia para que o mundo não caia em uma depressão como a dos anos 20 do século passado. Nem é mais os Brics [Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul], mas apenas esses três países, que são continentais e têm populações muito grandes. Então, se nós somos a 7ª potência econômica do mundo, tem coisa fabricada aí. Dizem que a educação é pré-condição para o desenvolvimento. Então, ou a sociedade transforma isso em realidade, ou vamos continuar patinando no terceiro mundo.

Cezar Santos — Muito disso vem da visão de nossa classe política.
E da sociedade também, porque ela permite que eles façam isso. Por exemplo, estamos discutindo no Conselho, agora, pontos nevrálgicos que nunca foram tocados antes. E estamos tentando tocar. Tem gente que chega até mim e diz “mas você foi nomeado pela Dilma”. Aí, eu digo: “Sim, mas eu tenho mandato e meu mandato é diferente do dela”. Eu não sou representante do governo, sou representante da sociedade civil junto ao governo. Eu fui indicado por sete associações de base nacional. O Conselho Nacional de Educação não pode ser um órgão de governo, mas de Estado. É preciso colocar isso na cabeça e enfrentar. Agora, eu tenho medo de enfrentar algumas coisas com poucos companheiros e sermos classificados como “l’enfant terrible” [expressão em francês usada para dizer que alguém é muito inocente e diz coisas embaraçosas]. Mas é preciso ser um tanto “louco” para enfrentar algumas coisas.

Estava reunida em Brasília a nata da nata da educação brasileira. Supos­tamente, os mais competentes do País em educação. Estavam lá todos os coordenadores de cursos de mestrado e doutorado em Educação do País. São 128 programas. E ouvindo aquelas discussões eu tive vontade de chorar, porque só debateram os cortes que o governo fez nas universidades federais. Era para a gente discutir o Plano Nacional de Educação. (enfático) Na crise, em nossas casas, nós replanejamos tudo. Eu disse isso lá, que deveríamos replanejar. Mas ainda ouvi na plateia: “Ele é conselheiro. Está defendendo o governo” (cochichando).

Pois eu vou convocar esses “PhDeu­ses” lá no Conselho para a gente apresentar uma solução, uma política para o País. É preciso analisar até quando vai a crise, se até o ano que vem ou até 2018. É preciso ter uma política para a crise, assim como se tem na própria casa quando falta dinheiro: ora, se falta recurso, o que vamos cortar, para deixar o essencial? É preciso replanejar. O que não pode é a universidade ficar chorando o tempo todo sem decidir nada, lamentando os cortes que o governo fez. Se cortou, certamente é porque não há dinheiro. E se há, vamos denunciar, vamos reagir

A entrevista acima foi concedida ao Jornal Opção, e aqui reproduzida parcialmente, com autorização do jornal.

Revista Pazes

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