Leio o título no jornal: “Zika agrava abandono de mulheres no Nordeste”. Este “agrava”, no início da frase, é tão dramático quanto o ” Zika” que o antecede, pois nos diz de duas epidemias sobrepostas. A mais antiga, o abandono sistemático de mulheres e filhos, já é aceita naturalmente , como se fizesse parte da normalidade. Resta pedir aos céus que não nos acostumemos com a outra.
A mulher entrevistada na reportagem que justifica o título chama-se Josemary, nome que a mãe escolheu pretendendo alguma modernidade, e da Silva, sobrenome do anonimato brasileiro. Josemary mora em Algodão de Jandaíra, a uma hora de ônibus de Campina Grande, e pode considerar-se feliz com o endereço, porque muitos moram mais longe. Há quatro meses teve um filho microcéfalo. Já tinha quatro meninos. O marido, pai dos cinco, se mandou antes mesmo do bebê nascer.
Agora, em Algodão de Jandaíra, Josemary acorda às 3h da madrugada para dar conta da casa, da comida que deixará aos filhos, do banho do bebê, tudo a tempo de tomar o ônibus e levar o pequeno até Campina Grande, onde recebe os cuidados especiais de que necessita. Josemary tem, e terá, que cuidar sozinha dos filhos. Mas não foi sozinha que os fez.
Precisarei perguntar a minha amiga Mary del Priore, historiadora interessada nas questões de gênero, em que momento o Brasil decidiu que paternidade era um passeio eventual, não uma responsabilidade, não um dever sem volta. A história deve ter uma resposta para isso.
Não é só no Nordeste que os homens saem pela porta deixando os filhos para trás. No Nordeste, pelo menos, havia um motivo inicial, ir procurar no Sul sorte melhor, que beneficiaria toda a família. Que depois o pai não desse mais sinal de vida parecia quase justo. Absorvido pela imensidão do Sul, desaparecia como se tivesse despencado além das Colunas de Hércules.
Mas também no Sul os homens abandonam seus filhos, sem alegar precisão alguma no Nordeste. Nas classes mais abastadas a coisa é entregue a advogados, passa por papéis, divorcio, mesada. A lei obriga a manter o caráter. Mas basta descer alguns degraus da escada econômica, para que a lei deixe de funcionar. Ela está lá, faltam os lubrificantes que permitem seu funcionamento. Se o pai fujão ganha pouco, não há de onde tirar pensão. Se há, ele é capaz de deixar o emprego e tornar-se autônomo, fugindo da lei como fugiu da casa. E pode haver ameaças, medo. Até orgulho entra na composição, a mulher achando que pode dar conta sozinha e que não quer pedir nada a ninguém. Os valores se invertem, o que deveria ser um direito indiscutível, torna-se algo a ser pedido, quase suplicado.
Houve um tempo em que mocinha que aparecesse grávida era expulsa de casa. Hoje, se a adolescente aparecer grávida, a família acaba de criá-la e a seu filho. As duas atitudes desconsideram o homem que engravidou a mocinha. Ela que se cuidasse. Foi dar uma de gostosa, ele sucumbiu. O filho é dela, só dela, e a ela cabe criá-lo. Como se fosse apenas um acidente de percurso, o pai some a caminho do futuro, sem problemas de consciência.
Tudo isso já faz parte de infinitas rotinas domésticas brasileiras. O país aceita como normal este modelo em que as crianças são as mais prejudicadas, sem pai, sem família organizada, sem as oportunidades que presença e contribuições de um pai poderiam lhes dar. Mas o Zika impõe uma pergunta: acharemos normal que pais abandonem seus filhos malformados, ou buscaremos atitudes mais civilizadas?
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