A questão é: como saber a hora de encerrar os nossos ciclos pessoais? Quando saberei se devo mesmo abandonar aquele trabalho que me esgota completamente? Aquele relacionamento que já não faz as estrelas dos meus olhos se acenderem? Aquele curso que eu insisto em levar adiante sem paixão? Aquele “caso” que tem mais jeito de des-caso que qualquer outra coisa?

A gente vive ouvindo (e repetindo) sobre a importância dos ciclos.
Na bíblia inclusive tem uma passagem linda sobre isso, nos Eclesiastes: “há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de colher; tempo de matar e tempo de curar; tempo de derrubar e tempo de edificar; tempo de chorar e tempo de rir; tempo de prantear e tempo de dançar; (…) tempo de amar e tempo de odiar; tempo de guerra e tempo de paz.”

Muitos dos ciclos independem de nós, porque são regidos pelas sábias mãos da Natureza, do Destino, do Barba (meu jeito carinhoso de me referir a Deus. Acho “Deus” muito sério…), do Universo, dos Oráculos, ou seja lá o nome que cada um dá às forças invisíveis que organizam o mundo. E isso é bom, porque nos poupa de qualquer esforço e até mesmo da responsabilidade pelas mudanças ao nosso redor. Podemos ficar lá, confortavelmente sentados em nossos sofás, assistindo nossas séries no Netflix, tomando chá e tá tudo certo: o “mistério da vida” se encarrega de abrir e fechar as portas pra nós, sem que tenhamos de manejar qualquer maçaneta ou lidar com as possíveis dobradiças enferrujadas pelo tempo.

Algumas portas, porém, dependem totalmente da nossa ação para se abrirem ou se fecharem. E aí não tem zona de conforto que dê jeito: normalmente precisamos nadar contra a maré, criar disposição hercúlea, arcar com consequências doloridas.

E a grande questão é: como saber a hora de encerrar os nossos ciclos pessoais? Quando saberei se devo mesmo abandonar aquele trabalho que me esgota completamente? Aquele relacionamento que já não faz as estrelas dos meus olhos se acenderem? Aqueles “amigos” por conveniência, que não acrescentam beleza na incrível arte de (con)viver? Aquele curso que eu insisto em levar adiante sem paixão? Aquele “caso” que tem mais jeito de des-caso que qualquer outra coisa?

Bem que podia existir um abracadabra instantâneo, capaz de indicar os momentos dos nossos pontos finais. Mas não tem. E coragem sozinha não segura a biela quando as consequências chegam. Quando as contas chegam. Quando as solidões – e elas são tantas… – chegam. Quando o céu escurece. Quando você precisa criar um monstrinho imaginário chamado Martino pra conversar à noite, depois de chegar em casa e fechar a porta – literal e simbolicamente (porque sim, esta é uma das portas que o tal “mistério da vida” não consegue fechar por conta própria).

A coragem precisa estar acompanhada. Uma coragem sozinha não faz decisão. Não sei se os acompanhamentos da coragem funcionam ao estilo Outback: uns preferem batata frita, outros preferem cebola e outros preferem legumes – apesar de eu achar que legumes não combinam taaaaaanto assim com Outback. Mas ok, o acompanhamento é pessoal e intransferível.
A minha coragem, por exemplo, precisa sempre de dois acompanhamentos: de uma lista objetiva e de desencanto.

A lista objetiva pode demorar pra ficar pronta. São páginas e páginas de um diário, dias e noites pesando pacotinhos emocionais na balança do coração, horas e horas de conversa séria – com a mãe, com a tia, com as irmãs, com o Martino, com os amigos mais próximos e, acima de tudo, consigo mesmo. Mas depois de todo esse processo de maturação, geralmente a lista objetiva vira um instrumento bem confiável de decisão. Quase um “plano de negócios” pra vida – pra quem tem essa mania de racionalizar tudo como eu. Ou de pelo menos tentar, porque nem sempre o coração sai do meio do caminho.

O desencanto já é mais lento. Porque o irmão gêmeo dele, o encanto, é otimista demais. E no palco da decisão só cabe um por vez: pro desencanto entrar, o encanto precisa sair. Só que o encanto é um cara insistente! Ele vê que os passos estão desalinhados, ele vê que as estrelas dos olhos estão desbrilhando, ele vê que a alegria está esquecendo de chegar… Mas ele acha que é só um dia, só uma semana, só uma coincidência, só uma fase; que logo tudo se alinha, tudo se acende, tudo se achega. Ele tenta usar a balancinha emocional, mas acaba confundindo as medidas de cada prato (o encanto nunca é bom com coisas práticas) e ajusta um lado em quilo, outro lado em arroba.

E ainda assim teima em dizer que o equilíbrio que ele enxerga na balança é a realidade do mundo. O encanto testa todos os experimentos que encontra. Passa dias e noites misturando cores, texturas e ilusões nos seus tubos de ensaio de esperança. Mas de tão incansável, chega uma hora que ele cansa… É muita espera pra nenhuma chegada. E então aos poucos ele vai desistindo. Desiste das cores, dos brilhos, dos dias e das semanas. E só então percebe o desajuste nos pratos da balança.

Ôrra, encanto! Já não era sem tempo!
O desencanto já estava cansado de esperar nos bastidores. Mas quando ele sobe no palco… Pre-para! Porque, junto com ele, o fim do ciclo chega chegando, delicadamente vestido em seu modelito avalanche. O desencanto, a essa altura, já decorou todas as frases da lista objetiva. Tá com o script afiado, na ponta da língua. Basta dar as mãos à coragem e então, finalmente, o abracadabra acontece! Vai ser duro, vai machucar.

A avalanche do fim do ciclo traz consigo apertos impressionantes no lugar em que antes a gente tinha um coração todo cheio de si; traz insegurança, medos de todos os tamanhos e formatos. Mas o desencanto é um mocinho decidido e está sempre lá segurando uma plaquinha que diz SIM, ESTAMOS NO CAMINHO CERTO APESAR DOS PERRENGUES. É preciso ter força – nas pernas, nos olhos, no buraco negro que agora preenche o peito – e caminhar por um tempo em meio ao caos. Tem hora que a estrada parece longa demais, pedregosa demais, triste demais.

Só que em alguma manhã mágica, o sol nasce com força e a gente encontra uma porta no final da trilha. E é ali que nos despedimos do desencanto. É ali que termina o fim do ciclo (sim, porque até os términos precisam terminar de verdade). Basta um agradecimento rápido com aperto de mãos, sem convites para o facebook ou para jantares em casa. O desencanto já está acostumado: o papel dele é apenas fechar a porta que a gente abre no final do caminho de pedras.

E não é incrível essa sintonia entre irmãos? Mal nos despedimos do desencanto e, no primeiro passo porta adentro, lá está ele nos esperando, num palco novinho em folha: o encanto. De braços abertos, sorrisão no rosto, havaianas coloridas nos pés, óculos desalinhados, todo descabelado entre balanças, cores, fórmulas mágicas e tubos de ensaio.

E a gente se joga sem pensar! Porque o brilho dos olhos dele é irresistível demais pra gente se lembrar de corações esvaziados, avalanches avassaladoras ou caminho de pedras. A propósito: alguém se lembra de uma porta fechada agora há pouco?

Revista Pazes

Uma revista a todos aqueles que acreditam que a verdadeira paz é plural. Àqueles que desejam Pazes!

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