Por João Marcos Buch
Existencialista que sou, questionei-me na passagem de ano se valeria a pena desejar que o mundo curasse suas feridas e evoluísse em sua humanidade. Não que eu não desejasse esse mundo melhor, mas será que ele ouviria uma pessoa que, no final de tarde do dia 31 de dezembro, sozinho remava em sua prancha de stand up paddle, no meio do mar, longe da costa e longe de tudo? Sempre me considerei uma pessoa de ação, que pouco espera e nada deseja. Por isso, logo me veio à mente a carta que havia escrito para os presos de Joinville onde constavam, afinal, esperanças, carta essa aliás que por alguma circunstância tomara as redes sociais e fora assunto entre muitos. Eu lembrava bem da ocasião em que a escrevera.
Antes do recesso na justiça, durante um almoço com a equipe de trabalho, a chefe de cartório me perguntou se eu mandaria mensagem aos presos, como sempre fizera nos anos anteriores. Respondi que havia pensado nisso, mas que não estava sabendo o que dizer. O ano de 2019 tinha sido muito difícil para o sistema prisional, mais do que eu imaginava. A taxa de encarceramento, assim como ocorrido em todo o país, havia aumentado muito em Joinville e com ela todo tipo de flagelo no cárcere. Entre dezembro de 2018 e dezembro de 2019, o número de pessoas presas no complexo saltara de cerca de 1.500 para mais de 2.000, ou seja, um acréscimo de 33%. E, é claro, o número de vagas tinha permanecido idêntico. O Presídio, que passou a receber reformas e construção de pavilhões, o que não solucionaria o problema, fechava o ano com 600 vagas para mais de 1.200 presos. O pior é que, além da superlotação e da carência de recursos humanos e materiais, a intolerância se agravava no Brasil, com polarizações, antagonismos e uma redução democrática somente vista nos anos de chumbo. Obviamente, o ódio veio junto e veio a galope.
Assim como ocorreu durante o nazismo e em muitos outros lugares e épocas, o ódio passou a ser um modelo político constitutivo. Ataques de intolerância ficaram mais frequente e explícitos contra os “indesejados”, ou seja, as minorias – leia-se minorias no sentido de poder e não de número. Nesse fenômeno as pessoas presas se tornaram alvos principais. Quando uma autoridade diz que “bandido tem que levar pau”, “que a prisão tem que fazer sofrer pois é só não matar, não estuprar, não roubar que não vai preso” ou que “é preciso mirar na cabecinha”, o recado que se dá é que os seres humanos atrás das grades não são seres humanos, são monstros, coisas que não merecem respeito. E, contra a lei e a Constituição, contra os direitos humanos em última análise, a população temente e cega introjetou essa terrível retórica, acentuando o deslumbre por aqueles que “dizem o que pensam”, pelo “tiozão do almoço de domingo”, pessoas que, sim, são autênticas, porém são perversas.
E para coroar o ano de 2019, um pacote chamado de “anticrime” foi aprovado e com ele penas aumentaram, crimes foram incluídos como hediondos, progressões de regimes restaram dificultadas. Ou seja, ao que tudo indica a situação, que já estava para além do limite da licitude, pioraria mais ainda, com maior superlotação e mais ofensas à Constituição.
Diante disso tudo, se eu não tinha mesmo o que escrever aos detentos, por que escrevi?
O sol quase se deitava por trás dos morros do vale, um barco pesqueiro se aproximava da baía, o mar estava liso, com a superfície encrespando um pouco aqui e acolá em razão de uma brisa silenciosa. Senti-me pleno e integrado. A conexão com a natureza nessas ocasiões, quando ela está sossegada, permite-nos também sossegar… e encontrar respostas.
A carta aos detentos foi uma tentativa de me aproximar de quem está atrás das grades e mostrar que eu, homem e juiz, também sinto por todo esse estado de coisas, que eu também tenho limitações, que nem sempre eu consigo corresponder ao que se espera de mim, que sofro. Sei que não posso me comparar a quem está preso, nunca fui preso, mas os detentos entenderam. A carta foi uma mensagem para além do sistema prisional, foi uma reflexão sobre o ser humano, sobre todos nós, sobre o que queremos como civilização.
Remando de volta, vendo o último sol do ano de 2019 se por, já não tão existencialista como antes, intimamente eu desejei. Desejei que 2020 fosse menos difícil, que o ódio fosse superado e as políticas de estado olhassem para todos os seres humanos, especialmente para as minorias, que os encarcerados tivessem condições mínimas de dignidade no cárcere, que os migrantes refugiados fossem percebidos na sua dor, que os povos indígenas fossem respeitados em toda sua ancestralidade, que os negros tivessem reconhecida a dívida histórica da qual são credores, que as mulheres tivessem oportunidade de conquista igualitária de seus direitos, que toda forma de amor fosse aceita. Enfim, que em 2020 pudéssemos de uma vez por todas sermos humanamente distintos e socialmente iguais. Que pudéssemos ser livres. Desejei.