Texto de Octavio Caruso publicado originalmente em Devo Tudo ao Cinema
Chernobyl (2019)
Ucrânia, 1986. Uma explosão seguida de um incêndio na Usina Nuclear de Chernobyl dizima dezenas de pessoas e acaba por se tornar o maior desastre nuclear da história. Enquanto o mundo lamenta o ocorrido, o cientista Valery Legasov (Jared Harris), a física Ulana Khomyuk (Emily Watson) e o vice-presidente do Conselho de Ministros Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård) tentam descobrir as causas do acidente.
Quando começou o burburinho nas redes sociais sobre esta minissérie, já no segundo episódio, fiquei curioso, priorizo os filmes, não sobra tempo para me dedicar às séries, mas o tema sempre me interessou, “peguei este bonde andando” no terceiro episódio e fiquei tão impressionado com a qualidade, que vi os dois anteriores na mesma noite, de uma sentada só. Ao final do quinto e último episódio, afirmo que não há elogios suficientes para esta aula de roteiro, som, atuação, direção, fotografia, reconstituição de época, figurino, maquiagem, montagem, em suma, arte de primeiríssimo nível.
O criador Craig Mazin tem um currículo fraquíssimo, basicamente comédias grosseiras, como “Se Beber, Não Case 2” e “Super-Herói: O Filme”, mas o que ele faz aqui me lembrou, guardadas as devidas proporções, a vez em que Mel Brooks, famoso pelas comédias leves, produziu “O Homem Elefante”, um dos dramas mais sombrios já feitos. Já a impecável direção do sueco Johan Renck apenas comprovou um talento que eu admirava desde que tive o primeiro contato com seu estilo nos videoclips “Blackstar” e “Lazarus”, do excelente último disco de David Bowie. Ele tira de letra a questão mais complicada, a construção de clima, equilibrando-se com extrema segurança na linha tênue entre o sensacionalismo e a austeridade respeitosa, filmando um longa-metragem dividido em partes, proposta que garante senso de unidade ao projeto.
O grande segredo de “Chernobyl” é facilitar o entendimento do público sobre os aspectos técnicos que envolvem a explosão e o funcionamento da usina, armadilha que prejudicou alguns similares ao longo dos anos, e, principalmente, deixar o tema da periculosidade da energia nuclear em segundo plano, quase como uma alegoria para os malefícios da mentira organizada, da arrogância praticamente consequencial em sistemas políticos ditatoriais corrompidos, conduzidos por líderes que rejeitam a democrática alternância de poder, suprimindo (até com violência) o pensamento crítico em seus comandados. O quinto episódio, “Vichnaya Pamyat” (memória eterna, em latim), praticamente todo ambientado em um tribunal, evidencia brilhantemente este ponto.
Não é um problema ideológico, filosófico, não há intelectualidade tangível no discurso, o que move sistemas políticos tortos é a pura falha de caráter de seus líderes e de seus seguidores. Não é coincidência que os russos, irritados com o sucesso e, por conseguinte, a divulgação expressiva das verdades da obra, estejam preparando uma versão deles para o evento, podemos esperar algo como a realidade alternativa que veículos sem credibilidade vendem diariamente sobre a política brasileira, histeria coletiva, perseguição ao governo atual, desejo pelo retorno ao poder de seus empregadores, mesmo que, para isto, seja necessário que o país quebre.
A minissérie exibe claramente o posicionamento desumano dos políticos soviéticos, enviando homens para a morte certa sem pensar duas vezes, colocando pessoas sem qualificação específica em cargos importantes (“postes” facilmente manipuláveis pelo Partido, como na cena em que a cientista confronta a arrogância de um destes incompetentes: “Eu sou uma física nuclear. Antes de ser vice-secretário, você trabalhava numa fábrica de sapatos”). Lá, como na Venezuela de hoje, a imprensa não tinha liberdade, não havia espaço para críticas, a regulação da mídia faz parte do jogo doentio, muito diferente do que ocorre em governos de direita, como Trump e Bolsonaro, que são apedrejados por jornalistas minuto a minuto. O mal que o socialista/comunista aponta é aquele que enxerga em seu próprio reflexo no espelho.
Quando adultos alfabetizados e emocionalmente maduros praticam dissonância cognitiva sem remorso algum, defendendo o indefensável, abraçando o conceito utópico socialista que, na prática, só dura até acabar o dinheiro dos outros, o resultado é sempre negativo, na maior parte das vezes, como as páginas da História relatam, desastroso. E quem paga a dívida é sempre o povo, o elemento menos importante na vida dos ditadores, a massa de manobra, o gado dispensável, a turba ignara.
Como lidar com esta situação? A única solução lúcida é desviar das pedradas, tapar os ouvidos e correr para o lado oposto sem olhar para trás. No caso dos heróis desta história, Legasov, Khomyuk (personagem fictícia que representa todos os cientistas) e Shcherbina (símbolo de que pode brotar uma flor do asfalto da burocracia corrupta), expor a brutal verdade para o mundo, a única atitude correta, conscientes de que o sistema apodrecido faria de tudo para tornar suas já destruídas vidas ainda mais insuportáveis.
“Chernobyl”, eclipsado na HBO inicialmente pelo desfecho patético da superestimada série “Game of Thrones”, prova que uma boa história bem contada ainda é o mais importante.