Literatura

Corpo de Festim: Toda a poesia do corpo humano

“Nasci no ano de 2014. Sou novo e irreverente. Não é preciso ser velho para ganhar um prêmio. É preciso ser bom aos olhos dos mais experientes. Com apenas um ano de vida, ganhei o Prêmio Jabuti na categoria poesia.
Isto quer dizer que, entre os poucos mais de duzentos livros inscritos nesta categoria, me sobressaí.
Não foi a toa. Você já deve ter ido à alguma livraria e ter xeretado alguns livros de poesia. Provavelmente deparou-se com temas românticos, como o amor, a vida, os encantamentos do universo ou as lágrimas de um amor não correspondido.

Não é o meu caso. Ao abrir-me, terá a oportunidade de fazer uma viagem para seu próprio corpo, voltar ao surgimento de vocês, seres humanos: – De onde vim? – Do átomo de carbono?

Seu corpo todo está dentro de mim e apesar de ser conhecido comumente como máquina, é também poesia.
Quando, em suas mãos eu estiver, dificilmente seus olhos irão se desviar. Em sua mente surgirão imagens de você por dentro, talvez de seu coração bombeando sangue ou de seu pulmão inflando.

Irá recordar-se de que há fluídos diversos dentro de ti; de que tua pele guarda tua carne, de que por ela passa uma cadeia de músculos e que lá no mais fundo do teu corpo, estão seus os ossos, que lhe permitem andar, sentar e movimentar-se!

Irá lembrar que nascera de uma placenta. Irá dar-se conta de que sua coluna vertebral é composta também por “pilhas de anéis que encapsulam a geleia na medula”.

Será que você imaginava isso tudo? Está o tempo todo consciente de que você, leitor meu, tem um corpo que não para de trabalhar, mesmo enquanto dorme?

Eu também tenho um corpo, mas minha carne é celulose; meu sangue, tinta tipográfica. Tenho cento e onze páginas. Meus órgãos são poesias! Podemos nos encontrar em alguma livraria ou, ainda, pela Internet. Meu pai chama-se Alexandre Guarnieri.

Fotografia de Amanda Erthal

Muito prazer, meu nome é Corpo de Festim!”

O Corpo do Corpo de Festim:

A capa de cor cinza com o título escrito na horizontal na cor vermelha traz uma imagem de Houdini, o contorcionista e trapezista que se tornou o mais famoso ilusionista de todos os tempos. Apaixonado por mágica, era ousado e destemido (assim como Corpo de Festim). Apresentava-se ao público sem roupas, apenas com shorts, tendo o corpo todo acorrentado e algemado. Seu número consistia em libertar-se sozinho de tais correntes num curto espaço de tempo.

Acorrentado e com o dorso levemente inclinado para frente, seu semblante nos provoca inquietação ─ Em que ele, Houdini, estaria pensando? ─ Suas sobrancelhas levantadas, junto à testa franzina com o olhar paralisado sem saber para onde está direcionado, sugere a presença de angústia.

No canto superior direito, o símbolo que o revela como o melhor livro de poesia escrito no ano de 2014: o logo do Quinquagésimo Sétimo Prêmio Jabuti, ocorrido em 2015.

Ao abri-lo, irá dar de encontro, nas grandes abas, com um saboroso comentário do poeta e crítico literário Amador Ribeiro Neto:

“E aí reside um dos grandes méritos de Alexandre Guarnieri: aventurar-se pelo universo temático, tornando-o como matéria de sua poesia….Guarnieri toma o corpo humano em sua biologia mais anatômica, embrenha-se em suas partes….Disseca o óbvio do corpo e nos revela o inesperado da linguagem…. O livro todo é metafórico. O que diz e o modo como o faz, remetem o leitor a uma antropobiologia que disseca a vida do homem uno e plural.”

O livro que trata poeticamente da anatomia e funcionamento de nossos órgãos é capaz de provocar sensações das mais variadas. Cada corpo é único e irá sentir de maneira diferente toda a poesia do corpo humano.

Corpo de Festim não é um livro para poetas apenas, nem somente para médicos. É um livro para todo e qualquer ser humano. Para quem gosta de deliciar-se com a poesia, em especial, a contemporânea, como diz Amador, referindo-se a Alexandre Guarnieri: “seu lugar na literatura brasileira contemporânea está assegurado.”

Dividido em três capítulos, somados a uma análise profunda e saborosa escrita pelas mãos de Mauro Gama e de José Elias Neto , a leitura é capaz de nos deixar sem
ar e causar sensações das mais variadas.

“… nas tripas da mais velha estrela; oceanos amnióticos; a antessala líquida do mundo; rio sanguíneo; samambaia dos nervos; contínua ilha viva; gruta muscular; pilhas de anéis; marfim fissurado sob cabelo; indissociáveis siamesas; idade placentária; irreversível descompasso; corpo de espantalho…”
São expressões utilizadas de forma não só poética, mas também estética ao falar sobre o corpo. Esta máquina que todos nós temos e que de seu bom funcionamento dependemos para viver bem, apesar de a maioria desconhecer sua anatomia.

É isso que Guarnieri faz: apresenta-nos o corpo por dentro, abordando seu funcionamento, sem deixar de abordar a disfunção do mesmo. Por isso, sua poesia também discorre sobre adoecimento de órgãos, sobre a morte que se morre aos poucos e a morte final.

Corpo de Festim é um livro que, ao abri-lo, você tem a sensação de estar abrindo o próprio corpo. Começa a tomar consciência dele, de suas partes que, juntas, formam um único sistema. Começa a desvendar alguns mistérios de seu funcionamento e a pensar no modo incrível de como ele, o corpo, trabalha de forma harmoniosa.

Praticamente tudo nele funciona de maneira involuntária. Você não precisa se lembrar de que é necessário respirar. Descobre que o cérebro, vulgarmente chamado de massa cinzenta, é o habitat de nossos neurônios e o grande maestro que comanda a fantástica sinfonia do nosso organismo..

Você é você, mas não é. Você é, na verdade, o seu corpo que funciona através dos comandos cerebrais.
Se você, leitor, chegou até aqui, é porque realmente está interessado!

Fotografia de Amanda Erthal

Nas próximas páginas irá tomar conhecimento da história deste atrevido livro, que surpreendeu os jurados naquele ano de 2015 que tinham a árdua tarefa de selecionar quem representaria a poesia brasileira escrita no ano anterior.

O anúncio do Prêmio Jabuti e toda a graça de Guarnieri:

Setembro de 2016, último sábado. Guarnieri me recebe em sua casa. Do lado de fora, a porta nos diz um pouco sobre ele: uma pequena placa fixada com letras garrafais, escrito “POETA”.

De um jeito despojado, vestindo bermuda e camiseta, convida-me a entrar. De forma espontânea, Guarnieri não parecia preocupado em ser entrevistado. Pede para que eu fique a vontade enquanto traz água.

Em sua sala de estar, que combina móveis rústicos com um sofá contemporâneo, nossa entrevista-conversa se inicia e pouco a pouco, vamos mergulhando na história que lhe premiou com o Jabuti, entre palavras e risos.

Guarnieri conhecia o processo, pois havia se inscrito no ano de 2012 com seu primeiro livro, chamado Casa das Máquinas, Editora da Palavra, Rio de Janeiro, 2011.

Ele explica: “o Prêmio Jabuti é composto por duas etapas: na primeira são eleitos os dez finalistas. Dentre eles, serão escolhidos os vencedores, que figuram em primeiro, segundo e terceiro lugares.”

“As inscrições ocorrem no meio do ano, no mês de julho”, diz. Em meados de outubro são divulgados os dez finalistas.

Guarnieri queria, ao menos, estar na lista dos dez. Para ele, era o suficiente. Já que o Jabuti é considerado um importante prêmio para os literatos, o que agrega valor no currículo e na biografia do autor. Conta que “não esperava ganhar em primeiro lugar.”

No entanto, a realidade o surpreendeu:

Guarnieri é funcionário público. Estava no local de seu trabalho, junto aos seus colegas, posicionado em sua estação.

De frente ao computador e nele concentrado, começa a ouvir seu celular: bip, bip, bip! Os repetidos toques não paravam, fazendo com que Guarnieri verificasse o que estava acontecendo. Pega o celular em suas mãos e dá-se conta de que são inúmeras mensagens em seu Facebook, dizendo “parabéns”.

– Tem algo de errado! Não é meu aniversário! Pensou. Com uma gargalhada, continua:

– Quando fui ver era o resultado do Jabuti! Fala expressando certa indignação, ao estender os braços para frente de seu corpo, inclinando levemente o tronco para trás, como se tivesse levado um susto.

Na ocasião, Guarnieri havia se esquecido da data em que a lista dos dez finalistas seria divulgada. “Pensei que seria na semana seguinte.” Quando soube, conta que “ficou emocionado e com sua voz um pouco embargada.” A data era 22 de outubro de 2015.

Desde então, ficara ansioso para a lista dos finalistas e não perdera tempo:

– Desta vez eu sabia a data (19 de novembro) e fiquei entrando no site da CBL (Câmara Brasileira do Livro), órgão que organiza o prêmio. Mas o site estava travado, não consegui acessar. Estava no trabalho, sempre no trabalho.
Conta que teve a ideia de pesquisar do Google. Como a sessão é aberta, havia vários jornalistas. Um deles trabalhava num jornal reconhecido e rapidamente noticiou os ganhadores. “Quando vi o meu nome, dei uma enorme gargalhada e fiquei eufórico!”

– Caramba! Eles são loucos! Tiveram esta coragem!” Guarnieri relata, depois solta uma gargalhada contagiante que fez-me rir junto.

Em sua opinião, os júris estão mais abertos ao novo, dando mais atenção a estilos diferentes de fazer poesia. Acredita, porém, que é semelhante à loteria, pois “depende da sensibilidade da composição dos jurados”.

– No meu caso, acredito que meu livro caiu nas mãos de pessoas que estavam alinhadas com o tipo de linguagem do Corpo de Festim. Talvez, se fossem outras pessoas no júri, não teria ganhado.

– O que mudou em sua vida? Pergunto.

Guarnieri expressa um sorriso tímido e entrelaça suas mãos. Sentado no sofá, responde com sua fala tipicamente carioca:

– Ah, precisei arrumar um lugar para ele (o prêmio, que é uma estatueta) na minha casa. Tenho uma estante gigante que fica na minha sala. Nela, escolhi uma prateleira só para a estatueta, onde coloquei também os livros de todas as antologias das quais participei, mais uma iluminaria antiga do tipo que havia em bibliotecas com a luz verde.
Diz que “apenas isto mudou, somado à responsabilidade”:

Acredita que o prêmio lhe trouxe mais responsabilidade como poeta e como escritor. “É como se agora eu precisasse mostrar que tudo o que escrevo é bom. Fiquei mais crítico, mais exigente ainda com o que escrevo.”

Corpo de Festim ganhou o Prêmio pela Editora Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2014. Atualmente, está em sua segunda edição, pela Editora Penalux, Guaratinguetá, 2016.

Gestação e nascimento do livro:

“Este livro começou a ser escrito no final do meu primeiro livro, que levou cerca de quinze anos para ser escrito”, referindo-se ao livro Casa das Máquinas.

Achava que era impossível tornar-se escritor ou publicar alguma obra. Por isso, “escrevia para seu deleite” a partir de situações, momentos ou emoções que lhe causavam incômodo.

– Era um exercício pessoal. Fui escrevendo poemas até entender que tudo o que já havia escrito formava um conjunto.
Este processo fez com que Guarnieri se desse conta de que havia uma “energia sendo investida num determinado tema” (o corpo), o que alavancou o surgimento de outros poemas.

Por esta razão, não tem uma data específica de quando nascera o livro. Comenta:

– O processo de escrever poemas é intuitivo, repleto de altos e baixos. Não é linear. Você tem um poema, dois, três, quatro, aí você: opa! Ascende uma luz que fica piscando – pu! pu! pu! O tema começa a ficar claro. Você vai escrevendo outros poemas e se deixa contaminar por assuntos que imantam aquele tema e te alimentam de alguma maneira.

– Tudo vai ficando mais racional: preciso escrever um poema sobre o coração, por exemplo.

Atualmente, tem claro para si que Corpo de Festim nasceu a partir de sua experiência com Casa das Máquinas, em que poeticamente, retrata o funcionamento de máquinas diversas.

“Em algum momento dei-me conta de que o corpo também é uma máquina. Eu já tinha alguns poemas com este tema. O Corpo de Festim é o resquício da Casa das Máquinas.”

Após este processo de conscientização, Guarnieri passa para outra etapa de produção. Inicia uma fase de pesquisas, adentrando em um universo desconhecido. Dicionários e enciclopédias médicas foram utilizados; bem como busca por palavras que poderiam compor os poemas.

Conta que, “ao ler algum artigo médico, deparou-se com palavras desconhecidas e que tinham um som maravilhoso.” De alguma forma “a incorporo nos poemas, procurando formar uma escultura sonora.”

– Para mim, a pesquisa é fundamental na poesia.

Guarnieri estudou o corpo humano e seus órgãos. Fora em busca de palavras que combinassem seus sons. “As palavras precisam se encaixar, ter uma sonoridade que faça sentido naquele poema.”

– Sou um artesão da palavra. Comenta e em seguida, descreve:

“É como uma colônia de bactérias, um esporo que solta outro e vai se ramificando. Começa de dentro para fora, não pode ser uma imposição.”

Ao questionar sobre sua escolha para o título do livro, Guarnieri revela, num tom de brincadeira, apesar de estar falando com seriedade:

─ Quis brincar um pouco com esta palavra contraditória (festim), que tanto pode representar uma festa, como uma munição falsa. Quero que cada leitor encontre o seu significado no livro!

O estilo livre, leve e solto de Guarnieri:

Se há algo que não combina com o estilo despojado de Guarnieri é o controle.

É amigo do verso livre, também chamado de irregular, em que o verso ou a linha é quebrada a qualquer momento. Dá de ombros para os números de sílabas em cada verso.

– Nunca quis estudar a fundo a poesia métrica . O poema tem que causar uma estranheza, um desconforto, até para quem está escrevendo. Eu quero ser surpreendido pelo poema!

Para Guarnieri, compor um poema tendo que contar suas sílabas, é uma forma de controle que pode acabar com a arte e com a inspiração.

A tal estranheza e desconforto, para ele, vem desta forma irregular de compor. “Assim, os poemas podem provocam uma inquietude no leitor, levá-lo a uma reflexão. Escrevo com este intuito, de pensar em algo que nunca havia pensado ou, quem sabe, modificar o modo de pensar anteriormente.”

Escrever de forma intuitiva e em busca da sonorização das palavras. No entanto, enfatiza que “não há certo nem errado na poesia”. Cada poeta encontrará a maneira que mais lhe agrada.

Guarnieri também não segue um padrão de horário ou local específico. Quando a inspiração lhe visita, para onde estiver. Encontra qualquer pedaço de papel “nem que seja um guardanapo de bar”.

Jabuti, o Prêmio:

O jabuti é um animal muito parecido com a tartaruga. Semelhantes mas distintos, é um réptil pré-histórico, lento e terrestre, o que o diferencia das tartarugas.

O Prêmio recebeu este nome visando valorizar e reconhecer a cultura brasileira. Monteiro Lobato em uma de suas histórias infantis, criou o personagem jabuti, uma tartaruga que, apesar de ser vagarosa, era obstinada e esperta.

Características estas que, cá entre nós, precisam estar pressentes nos autores que se inscrevem no Prêmio.

A primeira premiação ocorreu em 1959.

Além de contemplar vinte e sete categorias, desde romances, documentários, capas, literatura infantil, tradução e poesia, o objetivo é destacar a qualidade do escritor premiado:

“…ganhar o jabuti representa dar à obra vencedora o lastro da comunidade intelectual brasileira, é ser admitido em uma seleção de notáveis da literatura.” (www.premiojabuti.com.br)

Ocorre anualmente e está aberto para qualquer pessoa e editora independente que tenha lançado o livro no ano anterior ao prêmio.

Fotografia de Amanda Erthal

Os jurados se diferem a cada ano e são compostos, para cada categoria, por pessoas altamente qualificadas em suas áreas de atuação.

Além da curadoria de Marisa Lajolo , há o Conselho Curador que tem como propósito, acompanhar as etapas, analisar e deliberar sobre casos omissos, além de ser responsável pela formação do corpo de jurados.
O Prêmio não se resume apenas em reconhecer a melhor obra, pois é também um incentivo à leitura, diante das novas revelações que são feitas em cada categoria.

Considerados grandes poetas, nomes como Cecília Meireles (1964), Carlos Drummond de Andrade (1968), Adélia Prado (1978), Hilda Hilst (1984), Manoel de Barros (1990), Vinicius de Moraes (1994), compõem a lista dos ganhadores.

Afinal, quem é o pai de Corpo de Festim?

Seu nome é Alexandre Guarnieri. Nasceu e mora na cidade do Rio de Janeiro. Com quarenta e dois anos de idade, escreve desde a pré-adolescência, “desde os meus doze anos.”

Começou a escrever diários, cartas para namoradas e alguns poemas. Desde então não parou mais. Porém, não fazia ideia de onde chegaria, nem do que estava escrevendo.

A seu ver, “a fala cotidiana não dava conta de seus sentimentos e de suas sensações; por isto buscou outra forma de expressá-los.” Somente com o passar dos anos descobriu que era poesia.

Com o tempo, diz que fora “sequestrado”.

─ A poesia roubou minha vontade de dizer as coisas e fui despertando para uma esta outra forma de se comunicar, que é através da arte da palavra.

Em 2000 formou-se em História da Arte pela UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro e seguiu cursando Mestrado na Escola de Comunicação da mesma universidade, defendendo sua tese em 2002, sobre Tecnologia da imagem.

No ano de 1993, começou a participar de eventos de poesia falada em sua cidade natal. Até os dias atuais, participa de oficinas de poesia.

Em 2012 integrou o corpo editorial da revista digital Mallamargens , voltada para poesia e arte contemporânea. O principal objetivo é favorecer um ambiente de troca e de diálogos literários entre os autores, bem como proporcionar visibilidade à produção do mesmo, podendo favorecer o contato com o meio editorial.

Apesar de ter ganhado o Jabuti de 2015, finaliza: “não tem nada de genial no que faço, o meu jeito de escrever poesia é a minha referência apenas, a minha forma de me expressar. Cada um tem a sua.”

Ssmaia Abdul

Jornalista literária e cronista, além de psicóloga narrativa com especialização em práticas colaborativas

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