Por Elisa Silva
“Não sou um pintor valentão, como dizem. Mas um pintor valente, que sabe pintar e imitar bem as coisas naturais”.
Essas são as palavras com as quais Michelangelo Merisi se define. De fato, poucos pintores da sua época representaram tão bem cenas de gênero e pessoas comuns como Caravaggio, tanto é verdade que mais de uma vez o pintor teve que refazer encomendas porque as pinturas originais foram consideradas vulgares, é o caso São Mateus e o Anjo (1602).
A primeira versão do referido quadro mostra um homem (e não um santo) de pernas desnudas e cruzadas que escreve de forma displicente acompanhado de um anjo com feições e modos bem humanos. Pior! O ser celestial está no mesmo plano do ser humano. A obra foi encomendada para decorar a Capela Contarelli, porém os contratantes não aceitaram o quadro, que mais parecia uma pintura de gênero do que uma pintura religiosa.
Em substituição, Caravaggio elaborou uma obra dentro dos cânones artísticos aceitos pela igreja, isto é, um santo com auréola e semblante sério, um anjo em plano superior como forma de comprovar sua origem celestial e uma cena envolta da solenidade requerida para a temática.
São Mateus e o Anjo não foi a única obra a ser recusada, aconteceu com outros quadros como por exemplo a Morte da Virgem (1605-1606). Algumas obras, apesar de não terem sido rejeitadas, causaram muita especulação, é o caso da Madona dos Peregrinos (1603), ela foi objeto de críticas não só pela forma vulgar de representação dos peregrinos, mas pelo fato de Caravaggio ter usado como modelo da virgem uma mulher de reputação duvidosa, que circulava livre e escandalosamente pelas ruas de Roma. Esse fato causou grande perplexidade no público em geral e acarretou ao artista a fama de bom pintor, porém sem decoro.
O comentário não se referia tanto as questões morais, mas a falta de conhecimento ou negligência do pintor no que diz respeito ao código próprio que a iconografia religiosa demandava. Apesar disso, Caravaggio era muito apreciado e é considerado o pai do Barroco, escola artística que representa a contrarreforma da igreja católica.
A fama desfrutada nesta época não reflete a vida pregressa do artista. Caravaggio não teve uma origem necessariamente humilde, era filho de um servidor público em um vilarejo na região da Lombardia. Atualmente, ele seria considerado classe média. Contudo, a peste matou o pai e o avó ao mesmo tempo, deixando a família numa situação financeira complicada. Quando o jovem artista foi enviado para Roma com intuito de aprender o ofício de pintor, ele era praticamente um mendigo.
Maltrapilho e faminto, Michelangelo Merisi não conseguia trabalho em Roma, sua situação era tão precária que ele acabou adoecendo e foi tratado numa casa de caridade destinada a indigentes. É nesta época que ele pinta Pequeno Baco Doente (1592-1593), que se resumia a imagem de um jovem pálido, fraco e faminto, isto é, tratava-se do seu retrato, com essa representação Caravaggio inaugura o que seria sua assinatura: autorretratar-se nos quadros.
Esses autorretratos que substituíram a assinatura propriamente dita do pintor (Caravaggio assinou uma única pintura) muitas vezes não representavam sua forma física, mas sim seu estado de espírito.
Curado, o pintor executou pequenos quadros para serem vendidos sem encomenda, é quando conhece mestre Valentino, uma espécie de marchand. Aliás, foi através de mestre Valentino que Caravaggio é apresentado ao Cardeal Del Monte.
A sorte do pintor muda ao conhecer o Cardeal Del Monte!
O cardeal o convida para morar em seu palácio e passa a ser o mecenas de Caravaggio, introduzindo-o a um mundo sofisticado que marca para sempre as escolhas artísticas do pintor, provavelmente é em razão deste novo mundo que o artista abandona a paleta de cores claras e luminosas do início da carreira para adotar o claro-escuro, este jogo de sombras e luz acompanhará o pintor até o fim da sua vida artística.
Em razão do mecenas famoso, Caravaggio recebe várias encomendas importantes e deixa de ser um pintor desconhecido para entrar na galeria da fama artística da época, recebendo reconhecimento e proteção de famílias ricas e de influência no círculo social italiano.
Para consagrar sua fama faltava apenas uma encomenda que pudesse ser apreciada no altar de uma igreja, o que acontece graças a influência do cardeal Del Monte. Caravaggio foi contratado para executar a decoração da capela Contarelli, com as obras tratadas no início do texto.
Apesar da oportunidade, Michelangelo Merisi não abandona seus hábitos populares, continua frequentando tabernas e prostíbulos, jogando e brigando nas ruas romanas. É consenso entre os estudiosos que as obras de Caravaggio refletiam seu temperamento violento, poucos pintores retratam tantas cenas de decapitação, assassinato e violência.
A matéria-prima para os quadros de Caravaggio era a emoção, que nem sempre era positiva, na maioria das vezes era colérica.
Michelangelo Merisi foi preso mais de uma vez, meteu-se em muitas brigas até o duelo que culminou na morte de Tomassoni, em 28 de maio de 1606. Esse evento mudou para sempre a vida de Caravaggio, obrigando-o a fugir de Roma por estar condenado a morte pelo Papa e com sua cabeça a prêmio.
Os motivos da briga que culminou no assassinato são divergentes, fala-se em briga de jogo, por uma mulher e até mesmo em uma disputa política, eis que Tomassoni defendia a eleição de um Papa espanhol e Caravaggio de um Papa de origem francesa. Os fatos são nebulosos, certo é que o pintor teve que fugir para sul da Itália ajudado pelo cardeal Del Monte e/ou pela família Colonna, ficou refugiado em vários lugares e protegido por inúmeras famílias influentes da época, o que revela a importância do seu trabalho, pois valia a pena dar abrigo a um foragido da lei.
Sabe-se que o pintor presenteava seus benfeitores/protetores com pinturas, é bem possível que sua aceitação na Ordem dos Cavaleiros de Malta tenha sido o pagamento por algumas obras que o pintor realizou para congregação.
É desta época sombria a obra Davi com a cabeça de Golias (1609), o quadro foi pintado como um pedido de perdão papal. Na obra, o pintor se autorretrata duplamente, como o jovem Davi, representando o pintor jovem e sonhador, e como o monstro que se tornou, representado pela cabeça medonha de Golias.
A dramaticidade do quadro – ou a influência do cardeal Del Monte e do cardeal Borghese, sobrinho do pontífice e grande apreciador do trabalho de Caravaggio -, comoveu o Papa, que concedeu o perdão ao pintor, contudo já era tarde demais.
Dias antes do perdão papal, Caravaggio – depois do triste episódio de uma prisão injusta em Port’Ercole e da perda dos seus pertences – contraiu uma febre que o levou a morte, o artista faleceu em 18 de julho de 1610, ele tinha apenas 38 anos de idade. Seu corpo na época não foi encontrado, situação que permaneceu sendo um mistério por séculos (em 2010 os restos mortais de Caravaggio finalmente foram encontrados).
Na sua curta vida ele produziu algumas das pinturas mais importantes da história da arte. Caravaggio é o maior expoente do Barroco, suas obras são facilmente reconhecidas até os dias atuais, isso porque ele representava sentimentos universais, os quais não são delimitados pelo tempo.
ES
Ps. Em homenagem àquele que tem Caravaggio como seu pintor preferido.
Elisa Silva é formada em Direito, História da Arte e autora de dois livros que misturam artes e viagens, busca compartilhar conhecimentos sobre obras e artistas com intuito de ofertar beleza aos leitores.
PS: Michelangelo Merisi, conhecido como Caravaggio, nasceu em 1571 e foi um dos mais notados pintores italianos, atuante em Roma, Nápoles, Malta e Sicília, entre 1593 e 1610. Seu trabalho exerceu influência importante no estilo barroco, estilo do qual foi o primeiro grande representante. Caravaggio era o nome da aldeia natal da sua família e foi escolhido como seu nome artístico. Exceto em suas primeiras obras, Caravaggio pintou fundamentalmente temas religiosos.
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