Há tempos a vida me desafia obrigando-me olhar de frente para os obstáculos sem opção de fuga. Quando criança eu vivia as questões do lábio leporino de forma latente. Era tratamento atrás de tratamento e tempos difíceis na escola. Não me lamento… Os azedumes não me endureceram.
Che Guevara, famoso revolucionário cubano escreveu “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.” Por razões diferentes acho que ele ficaria orgulhoso de mim. Cada um com a sua batalha. Cada um com suas dores. Cada um com sua ternura. A vontade de viver nunca me abandonou. E com o passar do tempo fui descobrindo que quanto mais sensível e terna me tornava, mais próxima me sentia da vida. Até que um dia os tabus gentilmente fizeram parte da minha carne e do meu ser sem doer mais. E as lições que aprendi me trazem profundo orgulho pelas minhas lutas vencidas. E hoje atrevo-me a falar em público. Tudo o que jamais imaginei que um dia fosse fazer. Afinal lábio leporino afeta diretamente a fala. É verdade, mas meu coração não foi afetado. E sigo em frente.
Encontrei mais coisas pelo caminho. Perdi audição e precisei da ajuda da tecnologia para ouvir. Graças a isso posso escolher se q
uero o acolhimento do silêncio ou se quero o acolhimento dos barulhos da vida. Acabo algumas vezes me sentindo privilegiada por poder escolher. E graças a isso minhas noites de sono são sempre deliciosamente silenciosas! E o fato de poder ouvir é sempre um privilégio!
Mas claro, não foi nada fácil. Aceitar as nossas perdas, alheias aos nossos desejos, é muito duro. Hoje, quase 10 anos depois de vencer essa etapa ainda me dói em silêncio ter que escolher entre o banho de cachoeira e ouvir a água batendo nas pedras. Lembro-me da minha mãe, tocada pelo que eu estava passando, tentando imaginar o que seria pior: Perder a visão ou a audição. A audição nos conecta ao mundo, acredito que mais que a própria visão. É ela que nos dá a amplitude da vida que nos cerca 360º. A música, as risadas, as palavras, o barulho do mar… Tudo isso faz florescer nosso mundo interior. E a visão por sua vez é quem nos orienta e dirige. É graças à ela que podemos ver belezas como o por do sol, as telas de Monet e as flores. O que minha mãe não sabia na época, é que esse devaneio seria inútil. Pois eu também perdi a visão. Ano passado meu nervo ótico cansou de batalhar e entregou os pontos. O Glaucoma faz tempo que não dá sossego… E toda minha visão periférica foi embora. Vejo apenas aquilo que está bem na minha frente. O que eu e os médicos chamávamos de “olho bom” parou de enxergar. E o até então “olho ruim” é quem me presenteia com a visão que ainda tenho. Andar num local cheio de gente é missão impossível para mim. Esbarro em todo mundo. E me orientar em lugares desconhecidos é bastante complicado.
Preciso juntar todos os pedacinhos que enxergo num quebra cabeças para formar o todo. E isso leva tempo! Mas por mais absurdo que pareça o que mais me dói é me passar por sem educação não cumprimentando aqueles que passam ao meu lado. Eu não os vejo e quando percebo que já os ignorei fico profundamente chateada, mas não há o que fazer. Vocês podem achar que estou louca, ficando mais aborrecida com isso do que com a própria perda de visão em si. A grande questão é que comecei a ver e ouvir de outra forma: com a alma. E ser gentil com as pessoas me faz feliz.
Aprendi que nossos sentidos são o nosso diálogo com o mundo. Os cheiros, cores, sons e texturas são o que nos liga à vida. E ter a visão e a audição levadas a limites extremos despertou em mim uma vontade ainda maior de viver. Pois outro mundo adormecido em mim até então, despertou. Rubem Alves dizia “Quero viver enquanto estiver acesa, em mim, a capacidade de me comover diante da beleza. Essa capacidade de sentir alegria é a essência da vida.” Vocês podem achar graça eu citar meu pai, afinal convivi com ele por trinta e oito anos e deveria ter absorvido em mim muito do que ele ensinou. Eu absorvi. Mas as mudanças que minha vida me propôs enfrentar fizeram-me mudar.
E aquilo que li, ouvi e me comovi milhares de vezes ao longo da minha vida parece que são lidas e ouvidas agora pela primeira vez, com uma conotação completamente diferente. A vida vale a pena enquanto eu for capaz de sentir a beleza e me comover com ela. E a beleza existe nas mais variadas formas, que venho descobrindo suavemente com o correr dos dias. Não sei se vou ficar cega ou se terei o pouco de visão que me resta. Só sei que independente do que eu tenha que enfrentar, eu vou descobrindo que minha força e minha vontade de viver estão além dos limites que posso imaginar. E com isso transformo as belezas para tornar o meu mundo belo, da minha forma.
Não bastante ter perdido muita visão ano passado, minha mãe num supetão despediu-se de nós e foi brincar com os anjos e as estrelas. E nós que achávamos que a teríamos conosco por um bom tempo ainda, sentimos o susto e a dor… E a vida se fez urgente. Porque ela se esgota e se esvai. Urgente para amar, urgente para sonhar, urgente para viver, urgente para sentir. E aquilo do lado de fora que me foi tirado povoou o lado de dentro. A sensibilidade transborda junto com os olhos. Fiquei em silêncio. Não havia nada que eu pudesse colocar fora do meu corpo que expressasse minha dor de viver tudo junto e misturado. Qualquer tentativa seria em vão. E a vontade de fazer desse mundo um lugar mais doce para se viver só aumentou.
De novo, Rubem Alves me acode: “O que seria de nós sem o socorro do que não existe?” Todos nós sonhamos e amamos. E como pedras preciosas ocultas, nossos sonhos e amores moram dentro de nós e só nós podemos senti-los na sua forma genuína, ninguém mais… Meus sonhos e amores não são palpáveis e são frutos abstratos do meu viver… Apenas eu os conheço da forma como são, portanto só eu sei que existem. Porém, a despeito de não poder tocá-los, são eles que me enchem de vida. E, se algum dia não puder mais ver a primavera florida do lado de fora, tratarei de alguma forma florescer por dentro.
Eu não sou heroína. E nem quero ser. O que a vida espera de mim me desafiando tanto assim? Não sei… Mas sei que ela muito sorrateira trata de ajeitar as coisas. Há quase três anos atrás deixei minha carreira de arquiteta para cuidar do Instituto Rubem Alves e propagar a obra do meu pai. Não fosse isso estaria literalmente em maus lençóis, afinal de que adianta um arquiteto com baixa visão? Não sei… Mas essa sensibilidade latente que fervilha em mim certamente irá me auxiliar, ainda não sei como, a eternizar o legado tão humano deixado pelo meu pai. E aos poucos ouço o meu silêncio se transformando em melodia…
Esse meu depoimento quer apenas lembrá-los que todos podemos transformar a vida dentro da gente. A força nós vamos encontrando pelo caminho. E sem que saibamos como, vamos consertando o que ficou atrapalhado. Não desistam da vida, por mais amarga que ela possa ser. Esse é um belo mundo que vale a pena ser vivido. Há belezas em todos os cantos, principalmente dentro de nós! Talvez o que a vida espera, é que a gente confie nela…
Raquel Alves (28/02/2017)
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