– Bom dia, estou com uma irritação na garganta, esta noite tossi muito, não consegui dormir, preciso de uma avaliação médica – eu disse.
– Bom dia, estou com uma irritação na garganta, esta noite tossi muito, não consegui dormir, preciso de uma avaliação médica – ele disse.
Não leitor, não se trata de um erro de narrativa. Coloquei essas duas frases, que são exatamente iguais, porque ambas foram ditas desta forma, porém cada uma por uma pessoa diversa, em locais distintos, num pequeno espaço de tempo entre uma e outra.
A primeira frase foi dita por um juiz de direito da execução penal, não tão jovem, que acordou com uma tosse seca e, como já a vinha sentindo há algum tempo e ainda não tinha ido no médico, resolveu marcar uma consulta no mesmo dia e que, depois de muito bem atendido, dirigiu-se à farmácia mais próxima e buscou o medicamento recomendado, que não era barato, mas que dada a sua condição financeira estável e liberdade de agir não pensou duas vezes em fazer a aquisição. Afinal, era de sua saúde que estava tratando.
Já a segunda frase foi dita por um rapaz condenado e preso, tão jovem que parecia um sobrinho do juiz, que acordou com uma tosse seca e, como já a vinha sentindo há algum tempo e ainda não tinha ido no médico, não pode resolver marcar uma consulta no mesmo dia ou em dia nenhum e que, depois de não ser atendido, não se dirigiu à farmácia mais próxima e não buscou o medicamento recomendado, que de uma forma ou de outra não seria barato e dada a sua condição financeira vulnerável e falta de liberdade de agir não importaria quantas vezes pensasse, jamais faria aquisição alguma. Afinal, pouco importava que era de sua saúde que estava tratando.
Quando esses fatos curiosos se apresentam a minha frente, essas coincidências, e elas são mais frequentes do que se imagina, é natural que eu reflita sobre as diferenças nas vidas das pessoas, que faça um comparativo. Por que eu tenho a possibilidade de buscar manter minha saúde, ao custo que for, e tantas pessoas por esse mundo não gozam do mesmo direito? O que eu fiz para merecer essa sorte do destino? Sei que não são só as pessoas que estão presas que sofrem das carências da saúde – ou da educação, do saneamento, da empregabilidade etc. Todo o tempo olhamos milhares de brasileiros sem acesso a um sistema de saúde digno, eu sei! Mas o fato é que os presos também sofrem dessa carência. Aliás, como seres humanos em um ambiente insalubre, superlotado, precário em todos os sentidos, eles talvez sofram mais, pois ficam mais vulneráveis ainda. Quando temos liberdade, se a saúde nos escapa, nós vamos atrás dela e a recuperamos ou ao menos tentamos recuperá-la. Mas quando se está preso, se a saúde escapar, corre-se o sério risco de nunca mais a recuperar. E essa pena não está prevista na lei. Em nenhum lugar está escrito que a pessoa que cumpre uma pena de reclusão deverá pagar com sua saúde, pelo contrário, esse direito à saúde é universal, constitucionalmente garantido a todos os seres humanos, indistintamente.
Por uma série de circunstâncias que não podem ser imputadas aos trabalhadores do sistema prisional, pois os recursos humanos são escassos, aquele detento precisou aguardar o juiz da execução penal comparecer na prisão para relatar seu problema e suplicar por ajuda. Eu, juiz, consegui ser atendido na minha saúde por um médico. Aquele rapaz não, ao menos até o momento em que o vi e com ele conversei, com ele me identifiquei, não importa o continente de distancia que nos separe. Que o juiz, guardião da lei e da Constituição, garanta que ele será atendido, é o que se espera desse juiz, é o que eu espero que esperem de mim.
Joao Marcos Buch – Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville/SC
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