“A pandemia é um fruto envenenado do desenvolvimento”, afirma Alex Zanotelli

“Sinto o mesmo mal-estar que sentia quando estava em Nairóbi, em Karogocho. Eu sentia o Natal sendo preparado na Europa, enquanto a minha realidade era feita de pessoas que procuravam comida em um lixão. Então, confesso, sinto uma espécie de rejeição em festejar.”

“É impossível voltar à normalidade, ao mundo de antes, onde 10% consome 90% dos bens produzidos no planeta.”

“Deus está nos últimos, nos explorados, em quem não tem uma casa e um trabalho, nos desesperados que morrem no mar. Deus está nos olhos dos fracos.”

“Quando ouço essas reclamações sobre o Natal, sobre as pistas de esqui, sobre o pedido de ser livre para circular pelos centros comerciais para comprar coisas que quase sempre não precisamos, me sinto mal. A pandemia mata centenas de pessoas por dia, e nós assistimos indiferentes aos tristes relatos das vítimas. São homens e mulheres que morrem sozinhos. Sofrimentos, vidas despedaçadas, afetos que vão embora, esperanças acabadas, e nós pensamos nas luzinhas. Mas o que nos tornamos?.”

O padre Alex Zanotelli, 82 anos, é um homem de fé, mas também de dúvidas. Filho de um carpinteiro antifascista de Livo, Val di Non, na Itália, e o primeiro de sete irmãos, ele entrou no seminário aos 11 anos de idade. Como missionário comboniano, procurou a Deus nos recantos mais sombrios e desesperados do mundo. No Quênia, em Nairóbi, na favela de Karogocho, onde morou 12 anos em um barraco. Como os outros, os últimos que lhe deram novos motivos para alimentar a sua fé, mas também, e muitas vezes, razões para se perguntar: “Deus, onde estás?”.

Encontramo-nos com o Pe. Alex em 2015, em um triste dia de morte e violência no Rione Sanità. É essa periferia no coração de Nápoles, cara a Totò e a Eduardo, a sua nova casa. Ele mora aqui há anos em três pequenas salas anexas à Igreja de San Vincenzo. Ele não tem celular. Para contatá-lo, é preciso confiar na infinita paciência e no celular da Dona Felicia, uma médica que todos chamam de Felicetta, e que atua como sua porta-voz (no sentido literal do termo). Era um dia de setembro, e a Camorra havia matado um jovem inocente de 17 anos, Genny Cesarano.

“Deus não vai mandar ninguém para nos salvar”, disse o missionário comboniano no funeral. “Devemos dizer ‘chega’ à Camorra, ao tráfico de drogas, à violência.”

A reportagem é de Enrico Fierro, publicada em Domani, 21-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto., que trouxemos da Revista IHU.

Eis a entrevista.
Padre Alex, estávamos falando da dor que lhe provocam as conversas fiadas sobre o Natal no meio da emergência da Covid-19.

Sinto a mesma dor que senti quando estive em Nairóbi, em Karogocho. Eu sentia o Natal que estava sendo preparado na Europa, enquanto a minha realidade era feita de pessoas que procuravam comida em um lixão. Então, confesso, sinto uma espécie de rejeição em festejar, gostaria de passar a festividade para o dia 7 de janeiro, como fazem algumas Igrejas orientais. Porque o Natal foi desvirtuado do seu significado essencial e foi transformado na maior festa do consumismo mundial.

O slogan do momento é o retorno à normalidade. Isso lhe agrada?

Mas é impossível voltar à normalidade, ao mundo de antes, onde 10% consomem 90% dos bens produzidos no planeta. É uma situação insustentável. A pandemia que estamos vivendo é um dos frutos envenenados criados por um modelo de desenvolvimento econômico doente. Os ultrarricos mundiais fazem muita caridade, têm fundações, gastam dinheiro, mas o compromisso de caridade deles tem apenas um objetivo: evitar a mudança radical do sistema. Talvez celebraríamos o Natal acolhendo a mensagem que o nascimento do pobre Jesus de Nazaré nos deixou. Ele nasceu em uma cabana. Ora, eu não estou dizendo que, para seguir a mensagem de Cristo, todos deveríamos morar em um barraco.

Não, Deus nos quer felizes também na terra, mas um mínimo de sobriedade, de capacidade de nos conter, de respeito pelos outros, essas coisas nos ajudariam a entender que devemos mudar de estilo e de forma de vida. Tivemos a primeira onda do vírus, contamos os mortos, experimentamos a fragilidade da nossa organização social, o modo injusto como a riqueza é redistribuída, mas não valorizamos os ensinamentos. Voltamos logo à chamada normalidade, com uma ansiedade verdadeiramente irresponsável. Festas, férias no exterior, a vontade de aparecer e de consumir. A indiferença para com os outros. Assim, chegamos à segunda onda. Queremos uma terceira? Isso é o que me faz mal, o egoísmo humano. Podemos recusar milhares de coisas supérfluas, viver de forma mais simples, seríamos muito mais felizes e permitiríamos que o planeta nos suportasse.

Mesmo assim, na primeira fase da pandemia, o slogan era: sairemos melhor. Pe. Alex, o que era isso, uma esperança? Você chegou a acreditar nisso?

Não, eu estava totalmente cético. Sou uma pessoa que crê e nunca perco a esperança, mas a Bíblia nos ensina muitas coisas. Se refletirmos sobre o dilúvio universal, qual era a mensagem de Noé? Mudar, era isso o que ele pedia às pessoas, mudar a relação com os outros e com o mundo, derrotar as injustiças e a pobreza. Não o ouviram. Eles também aspiravam à normalidade, e veio o dilúvio. Tomemos Jesus: ele compreendeu que estavam indo rumo a um confronto com Roma. Fez de tudo para que entendessem. Depois, chegaram as legiões romanas que destruíram Jerusalém e dispersaram o povo judeu. Ontem como hoje, as pessoas rejeitam a mensagem de Cristo, não querem mudar de vida. Há algo no coração humano que não vai bem.

Ao homem de Igreja, eu pergunto se há algo que não está disposto a perdoar à economia, à política, nesta terrível fase que a humanidade está atravessando.

Não é uma questão de perdão ou não perdão. O problema é que esse sistema é insustentável. Recuso-me a aceitar as escolhas de quem tem nas mãos as alavancas da economia. E não entendo o governo italiano que, para sair da crise econômica provocada pela pandemia, investe em um mar de coisas inúteis. Mas como é possível ainda apontar para obras públicas grandes, caras e inúteis? Estou pensando na linha de trens de alta velocidade Lyon-Turim, nas discussões sobre a Ponte de Messina, e assim por diante. O que é preciso para entender que é preciso investir na água? É claro, nos projetos do governo, fala-se disso, mas é para pôr as mãos na água entendida como uma riqueza a ser explorada. A lei sobre a republicização ainda está parada na Comissão de Meio Ambiente. A água como bem público intocável era um dos pontos programáticos fundamentais do Movimento Cinco Estrelas: o que eles estão fazendo? Para republicizar, não são necessários 20 ou 30 bilhões, como escreveram os grandes jornais, mas no máximo dois bilhões. Por que não investir na nossa rede hídrica nacional, que acumula enormes perdas de 50%? É um crime. Essa é uma grande obra a serviço do bem comum. Queremos falar das armas, dos bilhões investidos, dos interesses da nossa indústria?

Padre, todos se lembram das suas batalhas contra as leis que criminalizam a imigração e o acolhimento. O debate sobre essas questões na Itália é dilacerante e afeta todas as camadas sociais. Os italianos se tornaram racistas?

Todas as quartas-feiras do mês, fazemos o jejum por justiça em solidariedade aos migrantes na frente do parlamento. Os decretos de segurança desejados por Salvini são a negação de qualquer direito previsto pela nossa Constituição [italiana], mas também não gosto da atitude do atual governo. Como eles podem reter os navios humanitários nos portos, por quais razões eles impedem as organizações não governamentais de trabalhar no Mediterrâneo para salvar vidas? Quanto aos italianos, é claro que a semeadura racista de todos esses anos deixou marcas. O problema é mundial. Na Europa, há um pensamento profundo que ressurge. Nós tínhamos o direito de invadir o mundo para levar a nossa civilização. Nesse pensamento, vejo um pano de fundo racista que ressurge. Na Itália, precisamos dar um grande salto de qualidade, e nisso o papel da Igreja é fundamental. Recomecemos a partir da encíclica do papa Fratelli tutti. Quero ser crítico também com o meu mundo. Ainda vejo muitas paróquias indiferentes, muitos padres sensíveis aos apelos da direita mais obscurantista. Todos devemos entender que não há alternativa a um mundo plural: ou o aceitamos ou estaremos destinados a nos dilacerar.

A TV e a web estão desempenhando um papel alarmante na disseminação de ideologias racistas.

A função das mídias sociais na difusão de slogans racistas é extraordinária, mas não devemos esquecer que, por trás disso, está a mão de uma direita mundial bem organizada que tem dinheiro que não acaba mais e que investe nisso. São os mesmos ambientes que odeiam o Papa Francisco e o consideram uma anomalia para a Igreja.

Em uma bela entrevista ao jornal Corriere della Sera de alguns anos atrás, você falou do rosto de Deus e disse que o encontrou nos olhos de Florence. Quem era?

Naquela época, eu cuidava de meninas com Aids. Florence tinha 15 anos. Abandonada pela mãe, começou a se prostituir aos 11 anos de idade. Uma criança. Disseram-me que ela estava morrendo, e, com alguns fiéis, fui vê-la. O seu barraco era escuro. Com uma vela, eu iluminei o seu rosto lindíssimo, devastado pelas chagas da doença. Ela começou a rezar. Ela me fixou longamente, depois disse: “Alex, eu sou o rosto de Deus. Deus é mãe”. As meninas da favela morriam em leitos sujos e em barracos sem luz, e eu, ao lado delas, assistia impotente a tanto sofrimento. Elas me davam força para seguir em frente na fé, mas também me colocavam diante da dúvida: “Deus, onde estás?”, eu me perguntava nos momentos de desconforto. Pois bem, Deus está em Florence, nos últimos, nos explorados, em quem não tem uma casa e um trabalho, naqueles desesperados que morrem no mar. Deus está nos olhos dos fracos.

Imagem de PublicDomainPictures por Pixabay






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