Por João Marcos Buch
A casa ainda aquecia naquele amanhecer gelado de inverno quando Hanna e seu pequeno filho Davi tomaram a rua. Os pés, protegidos apenas com meias brancas e chinelos abertos, sentiam o frio das pedras das calçadas. Com suas roupas cinzas e brancas os dois apertavam o passo, sempre segurando as mãos um do outro, procurando não fazer barulho. As ruelas por onde passavam, em direção ao ponto de ônibus, cercavam-se de casinhas que aos poucos tinham as chaminés tomadas pela fumaça produzida pelas lenhas que começavam a arder nos fogões de cada lar.
Naquela madrugada, às 4 horas, o despertador de Hanna tocou e ela, que quase nada tinha dormido, deu um salto da cama que ocupava só e sozinha. Ela logo acendeu o fogo do fogão à lenha e foi acordar Davi, que demorou um pouco a entender porque tinha que sair da cama sem que o sol tivesse nascido. Tomaram em silêncio um café morno e fraco, acompanhado de um pedaço de pão adormecido. Depois vestiram suas roupas brancas e cinzas, que Hanna tanto desprezava. Aquele tipo de veste tinha sido determinado pelo estado, não havia como usar outras roupas, de outras cores.
Hanna sabia que devia obedecer, resistir era inútil e poderia até ser castigada caso descumprisse a ordem. Mas Davi, tão criança, relutava, não queria sair pelo bairro e pela cidade com vestes tão tristes e desconfortáveis. Pedia para a mãe, choramingando, para usar uma jaquetinha de várias cores alegres que tinha ganhado do pai, pai esse que havia sido levado de casa pelo estado há muitos meses. Hanna explicou pacientemente que aquelas roupas cinzas e brancas eram obrigatórias, que não tinham escolha. Ela tentou amenizar a situação, iludindo Davi com alguma esperança de que aquelas roupas logo iriam embora e que haveria um dia em que teriam liberdade para usar o que bem entendessem.
E assim Davi se acalmou e aceitou colocar uma calça de malha cinza e uma blusa branca. Quando o horizonte começava a dar mostras de que o sol logo apontaria ambos já estavam no ônibus a caminho do seu destino. Outros passageiros, rumo ao trabalho, à escola ou a outros afazeres olhavam para os dois, únicos de vestes brancas e cinzas e de meias e chinelos. Todos identificavam de quem se tratava aquela mulher e a criança cuja mão segurava com força, sabiam para onde iam. E Hanna sabia que eles sabiam.
Ela evitava os olhares, abaixava a cabeça e afagava Davi, que embalado pelo ritmo do veículo acabou dormindo, com a cabeça encostada no seu peito. Passageiros entravam e saiam, sempre olhando para os dois, sempre os identificando por aquelas vestes, malditas vestes, pensava Hanna.
Finalmente, uma hora depois, no ponto final, Hanna e Davi desceram, haviam chegado no destino. Mais pessoas como eles também lá chegavam, todas trajando idênticas vestes brancas e cinzas, calçando chinelos, todas aguardando para ultrapassar os portais e as muralhas e, sob olhos atentos dos guardas, adentrar naquele campo onde encontrariam seus entes, suas famílias. E assim viveram, assim tentaram sobreviver, Hanna e Davi.
Ps. Essa não é uma história da Alemanha nazista, não se trata do Menino do Pijama Listrado, da Menina que Roubava Livros ou de Anne Frank. Essa é a história de uma mulher que nos dias de hoje, em Santa Catarina, Brasil, precisa sair de casa ainda de madrugada, levando o filho, para visitar o marido na prisão. Essa é a história de milhares de mulheres, mães, irmãs, crianças, pais, maridos e irmãos que são obrigados a usar roupas cinzas e brancas e chinelos de dedo para poder adentrar numa unidade prisional e visitar seu ente querido. Porque essa é a regra obrigatória imposta pelo estado, esse é o estigma com o qual os familiares dos presos são marcados, assim como os judeus foram marcados pela estrela de Davi no holocausto, essa é a Santa e Bela Catarina.
Joao Marcos Buch – Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville/SC
Na foto de capa: JUDEUS DEPORTADOS, MARCADOS COM UMA ESTRELA AMARELA, CHEGAM AO CAMPO DE CONCENTRAÇÃO (FOTO: GETTY)
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