O mito do amor romântico parece ter entrado na sociedade ocidental na Idade Média. Algumas pistas indicam que sua primeira aparição na literatura foi por meio do conto de amor vivido entre Tristão e Isolda. Não entraremos aqui neste mérito. O que nos importa é evidenciar um pouco da estrutura e das influências que este mito legou às sociedades.
O mito do amor romântico é muito mais que uma forma de amor. É todo um conjunto psicológico, tecido de expectativas e idealizações onde pessoas e realidades são inseridas.
No mito do amor romântico a paixão prevalece. Assim, cria-se a ilusão de que o foco da paixão condensa todas as soluções dos problemas existentes na vida. O outro acaba se tornando uma construção, cujos tijolos foram retirados
dos insondáveis terrenos de nossas carências e necessidades.
No mito do amor romântico, a pessoa amada é vista, de forma consciente ou não, como a primeira responsável pela satisfação dos desejos e necessidades de seu amante. Uma forma de encantamento parece inibir a percepção da realidade de maneira que a relação passa a representar um perigo para aqueles que dela fazem parte.
Sempre que falamos de mito do amor romântico, estamos, de alguma forma, evocando um inconsciente coletivo fortemente influenciado pela interpretação deste mito a respeito das relações amorosas.
Jung, grande nome da Psicologia contemporânea, demonstrou, por meio de sua reflexão, que quando um indivíduo vive um importante e marcante fenônemo psicológico, um grande potencial inconsciente está vindo à tona, emergindo, prestes a manifestar-se ao nível da consciência. Segundo ele, o mesmo pode ser dito quando o assunto é coletívidade. Do inconsciente coletivo de um povo pode surgir uma nova ideia, crença, paradigma, que é mantida por este povo.
Histórias contadas pelo povo são histórias que narram sobre o povo. E assim. As construções míticas e as elaborações folclóricas de uma cultura revelam o bojo de suas compreensões e estruturas. Somos nós os escritores dos contos que nos contam.
Os personagens dos contos de fadas seguem nesta ordem. As histórias seguem o mesmo fio de trama. O sofrimento da restrição. A plebeia, odiada pela madrasta, é impedida de ir ao baile. O sofrimento do borralho, a humilhação das enteadas, o desprezo de todos. A fada, por sua vez, bondosa e complacente, retira a pobre moça de seu abandono e lhe confere uma magia que a possibilita de participar do grande baile. O encanto está lançado. Mas este encanto tem tempo definido para durar. Meia-noite é o limite para que o amor aconteça. E assim acontece. O príncipe reconhece na menina pobre, que agora não aparenta ser pobre, a mulher de sua vida. O encanto prevalece até que os ponteiros do relógio anunciam meia-noite.
Desfeita a magia, o príncipe se põe a procurar a proprietária dos sapatos de cristal que ficaram esquecidos na escadaria do palácio real. Depois de prolongada busca, príncipe e plebeia se encontram, e, contrariando as expectativas da madrasta, casam-se c vivem felizes para sempre.
Veja bem. Nos mais diversos relatos de amor que pertencem à literatura, o mito do amor romântico prevalece no momento em que a realidade é construída a partir de seres humanos idealizados. O velho chavão que geralmente vem cravado no final das histórias — “e viveram felizes para sempre” – retira o amor de sua continuidade processual, que consiste em dores e alegrias.
No mito do amor romântico, o sofrimento é sempre portal da casa. Não há sofrimento na continuidade dos relatos. A expressão “felizes para sempre” funciona como uma negação do processo comum dos humanos, como se o amor fosse uma realidade que está distante de ser precária. O beijo final parece selar uma história em que não caberão limites e aborrecimentos. E a idealização da relação, em que cada parte deverá cumprir o papel de projetar e
ser projetado como personagem que viverá feliz para sempre, ainda que sem esforço.
A vida real não corresponde aos relatos dos contos de fadas. Não estamos acostumados a encontrar fadas madrinhas que transformam, num toque de mágica, a borralheira em princesa admirável. O processo humano é doloroso. Nossos sapatos não são de cristais, nossos cavalos são mancos e não há carruagens paradas às portas de nossas casas esperando para nos levar aos destinos de nossos sonhos. A vida nos mostra que transformações mágicas não existem, da mesma forma como amores perfeitos estão distantes de nossos olhos.
O que temos e podemos é a aventura de encontrar alguém, e ao lado dele construir uma história de vida comum, felicidade que nasce do duro processo de sermos promotores uns dos outros por meio do amor que sentimos.
O conceito de amor não pode ser aprisionado por esta visão romântica, que não sabe considerar os limites como positivos para o crescimento humano.
Trecho do livro: “Quem me roubou de mim?“, do Padre Fábio de Melo.