Delicadeza: o fio da civilidade

Por I. M. Martins

A delicadeza estabelece uma plataforma de convivência que separa o mundo, grosso modo, em duas parcelas – a dos brutos e a dos educados.

Os brutos são os grosseiros, os ignorantes, os toscos. Confundem força com rudeza e falta de educação. Atravessam o caminho dos outros – física ou simbolicamente. Invadem lugares sem serem convidados, imiscuem-se na vida alheia. Os brutos são os sem noção.

Os educados são os cultos, os civilizados, os verdadeiros pensadores. Os educados são aqueles que, em qualquer circunstância, conseguem manter a sua inalterável doçura, como se fossem seres que não se misturam aos desagradáveis assuntos terrenos. Os educados são os delicados.

Ser delicado é quase um anacronismo, uma reminiscência teimosa do passado. É um traço praticamente irreconhecível nos dias que correm! A maior parte das pessoas nem sequer sabe o que significa a delicadeza, e confunde-a com feminilidade! Mas delicadeza é um traço da alma, é um refinamento da educação. Delicadeza é suavidade, cuidado, elegância, apuro, perfeição, cortesia, amabilidade. Delicadeza é também fragilidade – uma característica das finas porcelanas, dos cristais primorosos, das coisas belas e sensíveis.

Ser delicado pode ser tão cortante quanto uma espada! Ser delicado impõe-se naturalmente, sem ruído: não é preciso erguer a voz, barafustar, gesticular, fazer um escândalo. A delicadeza sobrepõe-se a tudo – cria o seu próprio espaço. Subjuga as pessoas! Arrasa os brutos – de educação e de espírito!

Percebe-se que o mundo tem sido invadido por uma raça de gente bruta, que vai conduzindo a humanidade de volta às cavernas. Numa era que a tecnologia podia elevar o homem, torná-lo melhor, mais culto e educado – porque a informação está disponível a um simples click – surge um caminho de volta à barbárie, mas não uma barbárie de sobrevivência, dominada pela caça e pela luta contra os perigos selvagens da natureza. Trata-se de uma barbárie pior – a da alma! Estamos perante a troca da excelência pela mediocridade, da civilidade pela brutalidade, da educação pela falta de modos.

É preciso recuperar a delicadeza: tornar as relações elegantes, refinar o espírito, redimir a alma. A delicadeza é uma espécie de código com regras subtis que são praticamente imperceptíveis quando se aplicam, mas que se tornam gritantes quando não se cumprem. Para a maioria dos mortais estas regras não significam nada, mas deviam significar: sem elas está-se no domínio das sombras, no reino dos brutos.

A delicadeza revela um mundo de pequenos silêncios, em que não se fala em excesso para poder escutar o outro; onde se está atento aos gestos e sinais para estabelecer uma linguagem elegante onde não é preciso dizer tudo; onde não se fala mal da vida alheia, nem se expõe as privacidades da vida pessoal; onde se veste com sobriedade sem expor as intimidades do corpo; onde não se atrasa para os compromissos; onde se lê bons livros para enriquecer o espírito e não para mostrar publicamente; onde não se conta vantagens – nem quem se conhece nem o que se faz.

A delicadeza é o infindável mundo da discrição, e é na delicadeza que reside a força – quando uma palavra é mais cortante que um grito e a civilidade vence a barbárie!






Antropóloga, nascida em África, viveu em vários continentes. Começou a escrever aos doze anos. As viagens e a antropologia refletem-se na sua escrita e na incapacidade de fixar-se em uma só cultura. O primeiro romance, publicado em 2014 (Cia das Letras), é uma trilogia de ficção e fantasia – O Mosteiro (vol.I), O Tibetano (vol.II) e o Dragão (vol.III). A segunda publicação, inspirada em uma experiência pessoal, aborda os relacionamentos: Como ser Amiga da Ex do seu marido (Matrix, 2015).