É elucidativo o que o escritor José Saramago escreveu (transcrito logo abaixo). De forma clara e concisa, ele não deixa margens à dúvida: a violência contra as mulheres é um problema dos homens. Tânia Pinafi afirma que “A violência contra a mulher tem raízes profundas que estão situadas ao longo da história, sendo, portanto de difícil desconstrução”. Ricardo Westin e Cintia Sasse citam a antropóloga brasileira Lia Zanotta para esclarecer: “[…] o controle do homem sobre a mulher persiste na memória social”. Se este é um processo histórico e cultural, significa dizer, em outras palavras, que é uma construção humana, mais especificamente: uma construção do homem; e se foi construído, pode sim ser desconstruído.
“O que aconteceria se uma mulher despertasse uma manhã transformada em homem? E se a família não fosse o campo de treinamento onde o menino aprende a mandar e a menina a obedecer? E se houvesse creches? E se o marido participasse da limpeza e da cozinha? E se a inocência se fizesse dignidade? E se a razão e a emoção andassem de braços dados? E se os pregadores e os jornais dissessem a verdade? E se ninguém fosse propriedade de ninguém?” (Eduardo Galeano, em trecho do livro “Mulheres”) Imagem via: Ação Água Afeto – Coletivo Apuama.
Problema de Homens (por José Saramago)
Vejo nas sondagens que a violência contra as mulheres é o assunto número catorze nas preocupações dos espanhóis, apesar de que todos os meses se contem pelos dedos, e desgraçadamente faltam dedos, as mulheres assassinadas por aqueles que creem ser seus donos. Vejo também que a sociedade, na publicidade institucional e em distintas iniciativas cívicas, assume é certo que só pouco a pouco, que esta violência é um problema dos homens e que o homem tem que resolver.
De Sevilha e da Estremadura espanhola chegaram-nos, há tempos, notícias de um bom exemplo: manifestações de homens contra a violência. Até agora eram somente as mulheres que saíam à praça pública a protestar contra os contínuos maus tratos sofridos às mãos dos maridos e companheiros (companheiros, triste ironia esta), e que, a par de em muitíssimos casos tomarem aspectos de fria e deliberada tortura, não recuam perante o assassínio, o estrangulamento, a punhalada, a degolação, o ácido, o fogo.
Esta é Somayeh Mehri (29 anos) e sua filha Rana Afghanipour, de apenas três anos. Uma noite, em junho de 2011, o marido e pai, Somayeh Amir, derramou ácido em Somayeh e Rana enquanto elas dormiam (ele fez tal atrocidade depois de Somayeh pedir o divórcio, devido às constantes agressões e ameaças do marido). Os seus corpos foram severamente queimados. Somayeh perdeu a capacidade de ver e Rana perdeu um de seus olhos. Ambas ainda precisam realizar inúmeras cirurgias. O pai de Somayeh vendeu sua terra, a fim de arrecadar dinheiro para pagar as despesas médicas; outros aldeões também ajudaram, assim como o governo. A ASTI parece ser uma instituição séria que trabalha contra este problema. Quem quiser conhecer e ajudar, acesse o link: http://www.acidviolence.org/
A violência desde sempre exercida sobre a mulher encontrou no cárcere em que se transformou o lugar de coabitação (neguemo-nos a chamar-lhe de lar) o espaço por excelência para a humilhação diária, para o espancamento habitual, para a crueldade psicológica como instrumento de domínio.
É o problema das mulheres, diz-se, e isso é verdade. O problema é dos homens, do egoísmo dos homens, do doentio sentimento possessivo dos homens, da poltronaria dos homens, essa miserável covardia que os autoriza a usar a força contra um ser fisicamente mais débil e a quem foi reduzida sistematicamente a capacidade de resistência psíquica.
Há poucos dias, em Huelva, cumprindo as regras habituais dos mais velhos, vários adolescentes de treze e catorze anos violaram uma rapariga da mesma idade com uma deficiência psíquica, talvez por pensarem que tinham direito ao crime e á violência. Direito de usar o que consideravam seu. Este novo ato de violência de gênero, mais os que se produziram neste fim de semana, em Madrid uma menina foi assassinada, em Toledo uma mulher de 33 anos morta diante de sua filha de seis anos, deveriam ter feito sair os homens à rua. Talvez 100 mil homens, só homens, nada mais que homens, manifestando-se nas ruas, enquanto as mulheres, nos passeios, lhes lançariam flores, este poderia ser o sinal de que a sociedade necessita para combater, desde o seu próprio interior e sem demora, esta vergonha insuportável. E para que a violência de gênero, como resultado de morte ou não, passe a ser uma das primeiras dores e preocupações dos cidadãos. É um sonho, é um dever. Pode não ser uma utopia.
“O conceito de que o homem é superior, deve subjugar a mulher e não permitir que ela decida sobre a própria vida foi construído e solidificado ao longo dos séculos e se mantém até hoje, permeando toda a sociedade”. E este é um problema abrangente, basta verificar alguns dados sobre o assunto: “A cada nove segundos, uma mulher é espancada pelo marido ou parceiro nos EUA. No Brasil, o Anuário das Mulheres Brasileiras de 2011 mostrou que 43,1% das mulheres no país já foram vítimas de violência em sua própria residência. No Egito, este número é 34%, segundo pesquisas nacionais. No Canadá, 29% das mulheres já foram atacadas fisicamente por seus parceiros íntimos e na Nova Zelândia o número chega a 35%” (Dados mais atualizados podem ser consultados clicando aqui e aqui).
A AUTORIDADE (por Eduardo Galeano)
Em épocas remotas, as mulheres se sentavam na proa das canoas e os homens na popa. As mulheres caçavam e pescavam. Elas saíam das aldeias e voltavam quando podiam ou queriam. Os homens montavam as choças, preparavam a comida, mantinham acesas as fogueiras contra o frio, cuidavam dos filhos e curtiam as peles de abrigo.
Assim era a vida entre os índios onas e os yaganes, na Terra do Fogo, até que um dia os homens mataram todas as mulheres e puseram as máscaras que as mulheres tinham inventado para aterrorizá-los.
Somente as meninas recém-nascidas se salvaram do extermínio. Enquanto elas cresciam, os assassinos lhes diziam e repetiam que servir aos homens era seu destino. Elas acreditaram. Também acreditaram suas filhas e as filhas de suas filhas.
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