Por RENATO NUNES BITTENCOURT
Talvez nunca a humanidade tenha alcançado um estado de consciência acerca da dor e da sua própria finitude de modo tão elevado como na cultura contemporânea. Buscamos de todas as maneiras meios de escaparmos das experiências dolorosas e tristes, vislumbrando acima de tudo a aquisição de um utópico estado de prazer eterno. Com efeito, os avanços tecnológicos nos proporcionaram em muitas circunstâncias um aprimoramento da qualidade de vida, favorecendo assim a dinamização do tempo para o seu uso em atividades mais aprazíveis. Porém, será que sabemos fazer uso adequado do tempo livre que dispomos para a realização de atividades que efetivamente ampliam a nossa potência de agir, tornando-nos mais criativos e solidários? Talvez não, e esse é o paradoxo inscrito no seio de nossa sociedade tecnologizada. Simultaneamente ao fato de termos obtido um considerável desenvolvimento material, ao mesmo tempo nos diluímos enquanto pessoas, pois pretendemos adequar todas as nossas interações apenas àquilo que de alguma maneira nos proporcionará vantagens imediatas.
A era em que vivemos é a era da liquidez, esse é o diagnóstico feito por Zygmunt Bauman, pensador polonês de grande vigor intelectual, dono de um estilo que associa na sua escrita clareza argumentativa profundidade e beleza retórica. De acordo com a análise nevrálgica de Bauman, os valores que a nossa cultura ocidental até então estabelecera como os mais nobres e elevados cada vez mais diluem-se como a água que se escorre das nossas mãos, sem que sejamos capazes de detê-la. A vida líquida é uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. Bauman constata que a vida na sociedade “líquido-moderna” é uma versão perniciosa da dança das cadeiras. O prêmio nessa competição é a garantia temporária de ser excluído das fileiras dos destruídos e evitar ser jogado no lixo [Vida Líquida, p. 10].
“Tolerar é injurioso”, dizia escritor, cientista e filósofo Johann von Goethe durante o Iluminismo, época na qual o pensamento da tolerância produziu uma espécie de “religião da razão”. No século XIX, Goethe alerta para o fato de que a tolerância seria apenas uma atitude transitória que deve levar ao reconhecimento do outro.
Esse processo simbólico de liquefação dos valores mais elevados da condição humana manifesta- se em diversas perspectivas de nossa vida em sociedade, tendo como característica comum a incapacidade de nos relacionarmos com a pessoa do “outro” de maneira plena, compreendendo assim a sua subjetividade e singularidade. Tendemos sempre a valorar a figura do “outro” tal como ela se apresenta diante de nós e não nela mesma, decorrendo daí os preconceitos, as diversas expressões de intolerâncias, em suma, a incompreensão da subjetividade do “outro”, que, infelizmente, progressivamente perde a sua própria natureza humana, singular, única, para se tornar uma mera coisa com a qual nos relacionamos de maneira fria, egoísta e superficial.
Um dos sintomas mais evidentes da “sociedade líquida” em que vivemos é a intolerância da massa social diante de tudo aquilo que de alguma maneira se considera como desvio de conduta ou que destoa dos padrões vigentes. Todo tipo de comportamento ou modo de ser que supostamente não se coaduna com nossos princípios particulares torna-se digno de nosso mais terrível desprezo, pois no fundo queremos ver estampado no rosto do “outro” um pouco daquilo que nós mesmos somos. Tudo aquilo que se expressa como “diferente” diante de nossos olhos é imputado enfaticamente como “extravagante”, merecendo assim a nossa reprovação imediata e o convite ostensivo a adequar-se aos nossos conservadores parâmetros axiológicos. Caso a resposta do “outro” diante de nossa exortação seja negativa, nos considerados no pleno direito de desprezar a expressão da diferença. Esta é a lógica excludente da neurótica sociedade pós-moderna, despreparada para interagir com a diversidade de perspectivas, pois para o indivíduo acomodado nos seus valores conservadores, é muito mais fácil tentar modificar o outro do que a si mesmo. Sempre a figura do “outro” é a culpada pela minha insegurança e derrota. É através desse tipo de ponderação que surge o espírito de tensão diante das ameaças terroristas, pois os governantes, interessados na manutenção do domínio político sobre a massa social, elegem como figura inimiga o outro, o intruso do país, tal como vemos atualmente na tendência absurda de considerar todo muçulmano como um terrorista em potencial. Os medos nos estimulam a assumir uma ação defensiva. Quando isso ocorre, a ação defensiva confere proximidade e tangibilidade ao medo, segundo a análise de Bauman (Tempos Líquidos, p. 15).
A liquefação dos valores da era pós-moderna manifesta como seu problema por excelência o projeto de suprimir a consciência de alteridade, a capacidade de compreendermos o outro na sua própria pluralidade de significados e vivências. Suprimindo a alteridade, cada vez mais empobrecemos as nossas relações interpessoais, pois reduzimos nossas experiências existenciais apenas àquilo que julgamos conveniente segundo nossos escusos critérios de avaliação. Um agravante a ser inserido nessas considerações é que dissimulamos essa incapacidade de convivência com a diferença através da criação de preceitos “politicamente corretos”, pois muitas vezes demonstrarmos publicamente adequação irrestrita a esses princípios de respeitabilidade social, mas intimamente permanecemos racistas, machistas e intolerantes diante do “outro”, ou ainda buscamos perseverar no nobre propósito de aceitar as diferenças, mas no primeiro desagravo que sofremos da parte do “outro”, lançamos-lhes as nossas violentas invectivas. Desenvolvemos o crônico medo de sermos deixados para trás, de sermos excluídos (Medo Líquido, p. 29). Tememos assim a proximidade do outro, pois este, na visão distorcida que dele fazemos, traz sempre consigo uma sombra ameaçadora, capaz de desestabilizar o frágil suporte de nossa organização familiar, de nossa atividade profissional e de nossa sociedade como um todo. Sendo o outro proclamado como o verdadeiro culpado por todo infortúnio da vida corriqueira, tudo aquilo que é feito para minar a sua dita inf luência maléfica sobre nós se torna válido. O agravante de tal situação é que muitas vezes colocamos o outro em situações vexatórias ou em condições vitais degradantes, e ainda por cima esperamos dele respostas positivas.
Desenvolvemos o crônico medo de sermos deixados para trás,
de sermos excluídos. Tememos assim a proximidade do outro
Nesse mundo marcado pelo alto índice de violência e pela necessidade de aceleração das nossas atividades cotidianas, seja na profissão ou nos estudos, optamos por viver encerrados e supostamente protegidos por muros e grades pretensamente invioláveis. Da mesma maneira, queremos distância da diferença, pois consideramos que somente o igual é bom, belo e útil para nós. Podemos constatar que a própria estética das grandes metrópoles modificou- se de forma grotesca nas últimas décadas. Os casarões antigos até podiam ser envolvidos por grades, mas estas eram constituídas de tal forma que permitia ao observador externo contemplar a beleza do imóvel, tratando-se muito mais de uma delimitação territorial do espaço ocupado. Atualmente, ocorreu uma mudança radical no modo como são elaboradas as estruturas espaciais das casas e prédios, evidenciando uma busca insana por segurança.
A necessidade mais profunda do ser humano é a de superar seu
estado de separação em relação ao outro, deixando assim a prisão de sua solidão
Ora, como a busca por segurança pode ser algo insano? De fato, parece uma idéia paradoxal, mas é tal comportamento que impera na nossa sociedade pós-moderna. De tanto vislumbrarmos a criação de mecanismos infalíveis de defesa perante o outro, o desconhecido, acabamos por desenvolver afetos reativos, medos, ou seja, a própria insegurança pessoal diante do mundo que nos circunda. O mal pode estar oculto em qualquer lugar, não se pode confiar em ninguém. Conforme salienta Bauman, grande parte do capital comercial pode ser e é acumulado a partir da insegurança e do medo (Tempos Líquidos, p. 18).
Nos sentimos seguros apenas quando somos vigiados a cada instante e se um grande muro de concreto nos isola da realidade externa. Permanece sempre uma atmosfera de insegurança no ar, pois, apesar de todos os recursos técnicos para nos proteger que possuímos, fica ainda essa tensão diante das ameaças externas
Uma nova estética da segurança modela todos os tipos de construção e impõe uma nova lógica de vigilância e distância. Se uma casa ou um prédio público não é ornado com grades nem possui câmeras de monitoramento, eles não nos inspiram a menor confiança. Somente nos sentimos seguros se somos vigiados a cada instante e se um grande muro de concreto nos isola da realidade externa. Permanece sempre uma atmosfera de insegurança no ar, pois, apesar de todos os recursos técnicos para nos proteger que possuímos, fica ainda essa tensão diante das ameaças externas. Talvez mesmo que permanecêssemos numa redoma hermeticamente fechada, a dúvida diante do desconhecido ainda nos afetaria. Como é possível vivermos assim?
As práticas amorosas também ref letem essa tendência de esvaziamento da interatividade humana, pois a nova ordem é apenas usufruir aquilo que o outro nos oferece, para que possamos em seguida descartá-lo sem qualquer peso na consciência. O complexo de Don Juan vigente na cultura mega-hedonista em que vivemos, longe de significar uma plena afirmação da condição amorosa e da própria sexualidade de uma pessoa, na verdade manifesta a sua pobreza existencial e a sua incapacidade de satisfazerse plenamente através da sua relação sentimental com o outro. Podemos dizer que a relação amorosa genuína desvela o espírito de alteridade entre duas pessoas, que se compreendem e se valorizam enquanto expressões subjetivas singulares. A necessidade mais profunda do ser humano é a de superar seu estado de separação em relação ao outro, deixando assim a prisão de sua solidão. Erich Fromm, que exerceu notável inf luência sobre Bauman, diz que “se eu amo o outro, sinto-me um só com ele, mas com ele como ele é, e não na medida em que preciso dele como objeto para meu uso” [A arte de Amar, p, 35].
Já as práticas líquidas do “amor” representam uma transposição da lógica consumista para o âmbito das relações humanas, pois o propósito maior é obter o máximo possível de contatos sexuais, em detrimento da qualidade e da profundidade das vivências. Nesse processo de degradação da experiência amorosa, o mais importante é aumentar cada vez mais o catálogo de nomes das “conquistas”, tudo em nome da soma de prazeres sensoriais, que, todavia, nunca satisfazem os desejos do fragmentado homem da pós-modernidade. Um desejo, sendo realizado, não gera um estado de satisfação duradouro na afetividade do indivíduo, levando-o então a correr atrás de novas conquistas, que servem de estímulos fortes para a manutenção de sua frágil sanidade psíquica. Esse processo de busca desenfreada por novas conquistas ocorre muitas vezes por uma necessidade narcisista do indivíduo adquirir reconhecimento diante dos seus “amigos” e de sua própria sociedade, caracterizando assim a falsa imagem de que o homem pretensamente bem sucedido sexualmente é feliz.
O AMOR PLATÔNICO
Os gregos antigos dizem que o ser humano experimenta, basicamente, três formas de amor: Eros, que está centrado na dependência dos parceiros; Filos , que se baseia na segurança; Ágape, o amor incondicional. O amor é temática comum dentre os filósofos gregos. Para Platão, o amor era o desejo de algo que não se possui. Contudo, o termo amor platônico, que designa um amor ideal, ou algo impossível de realizar, não espelha uma interpretação da Filosofia de Platão, que trata de uma realidade essencial.
Do momento em que o bem-estar genuíno proporcionado pelo amor, para ser alcançado, requer essa interação sincera entre duas partes distintas, a tendência egoísta de utilizar-se o outro como meio de obtenção de prazer conduz a um processo de reificação da condição humana, diluída na sua própria evasão axiológica. Isso não significa uma apologia da existência de um amor eterno, mas sim a necessidade de que o sujeito contemporâneo possa participar de um relacionamento movido pelo propósito de, mediante a capacidade de proporcionar bons afetos ao seu parceiro amoroso, recolher a partir daí a sua felicidade. O tipo egoísta é incapaz de amar o outro, mas tampouco é capaz de amar a si mesmo. O que o egoísta supostamente venera em si mesmo é a máscara social que ele utiliza como instrumento de fuga de si mesmo, de sua própria pobreza existencial. Para Bauman, “Nos compromissos duradouros, a líquida razão moderna enxerga a opressão; no engajamento permanente percebe a dependência incapacitante” (Amor Líquido, p. 65).
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