O fracasso da escola pública brasileira, para além de ser resultado de má administração, é fruto de seu próprio projeto. Adriano Machado Oliveira[1] (com ajuda de Bauman) concebe a produção do fracasso da escola universal brasileira a partir de uma perspectiva histórica e sociológica.
Foi com o advento da república que um cenário otimista para as classes médias burguesas (com o pensamento liberal em voga) surgiu. Neste momento histórico, a escravidão teve seu fim, o trabalho assalariado se expandiu e a lei passou a tratar de maneira igualitária qualquer cidadão, independentemente de cor ou classe social.
Ao mesmo tempo, a demanda de trabalhadores na indústria abriu espaço para o êxodo do campo para as cidades que se formavam,
A crescente complexificação da indústria, por sua vez, trazia a necessidade de que uma instrução mínima fosse fornecida a um enorme contingente de homens e mulheres do campo que chegavam às cidades urbanizadas. É nesse contexto, pois, que a ideologia liberal começa a fazer parte, progressivamente, do pensamento educacional brasileiro[2].
A entrada do pensamento liberal na formação do sistema educacional trouxe, consigo, a noção de mérito como causa de qualquer sucesso. Se, diferente de épocas passadas, agora qualquer pessoa pode entrar em uma escola e ter aprendizado comum para operar máquinas, fazer contas, ler e escrever, então o sucesso passa a depender somente do indivíduo. Uma grande contribuição para a crença na liberdade individual e no progresso técnico e científico como fruto da racionalidade humana.
Neste ponto, a teoria de Bauman passa a ser importante para Oliveira, já que é a escola nascido no seio do pensamento liberal que começa a produzir subjetividades. Estas, por sua vez, estão enquadradas no modus operandi da modernidade: é projeto desta época retirar as curvas e manter as linhas retas, retirar aquilo que é anormal, que é estranho, que é impuro e manter o mundo nos eixos de um progresso infinito.
As ciências humanas, logo após conseguirem o status científico, ficaram a cabo de nomear o anormal, de classificar a desordem e, desta forma, conseguir explicar a pobreza, as diferenças de aprendizagem entre crianças escolarizadas e das doenças mentais, por exemplo.
O objetivo da modernidade era manter-se limpa, pura,
Não há nenhum meio de pensar sobre a pureza sem ter uma imagem da “ordem”, sem atribuir às coisas seus lugares “justos” e “convenientes” – que ocorre serem aqueles lugares que elas não preencheriam “naturalmente”, por sua livre vontade. O oposto da “pureza” – o sujo, o imundo, os “agentes poluidores” – são coisas “fora do lugar”. Não são as características intrínsecas das coisas que as transformam em “sujas”, mas tão-somente sua localização e, mais precisamente, sua localização na ordem de coisas idealizada pelos que procuram a pureza[3].
Os puros, por sua vez, não são os dominantes. Não se trata de um esquema de dominação, unicamente. Os puros são aqueles que estão dentro da ordem, seja como dominante ou como dominado. A pureza é relacionada com a ordem e a presença dos indivíduos dentro da ordem, dentro da previsibilidade já programada, os coloca como indivíduo “limpos”. O impuro, por sua vez, é aquele que não faz sentido, que não foi previsto.
Os impuros na escola pública de ensino médio, passaram a existir devido às tentativas da psicologia em justificar as desigualdades entre alunos:
A psicologia científica nascente neste mesmo período não poderia ser diferente; gerada nos laboratórios de fisiologia experimental, fortemente influenciada pela teoria da evolução natural e pelo exaltado cientificismo da época, tornou-se especialmente apta a desempenhar seu primeiro e principal papel: descobrir os mais e os menos aptos a trilhar “a carreira aberta ao talento” supostamente presente na nova organização social e assim colaborar, de modo importantíssimo, com a crença na chegada de uma vida social fundada na justiça[4].
A busca pelo aptos e inaptos, os puros e impuros, tem teste final na escolha pelo ensino superior. Inúmeros professores e atores escolares, afirma Oliveira, verbalizam a meta final do estudo na entrada ao ensino superior. É desta maneira que o aluno acaba sendo homogeneizado, coberto por uma meta universal.
No entanto, não são todos os alunos que desejam entrar em uma faculdade. Esta sobra que não guarda esperança ou vontade para a universidade é a parcela estranha do sistema educacional. Para eles, a escola aparece como um ambiente hostil, já que não são enquadrados como legítimos estudantes.
A disciplina escolar, inflexibilidade curricular e o silêncio imposto aos estudantes como parte da metodologia pedagógica não dão conta de todos os alunos que, ao serem colocados diante de um sentido único para seus estudos – o ensino superior – não aderem a qualquer forma padrão de conduta no ambiente escolar.
Eles são “estigmatizados como os desinteressados, bagunceiros, filhos de famílias desfavorecidas e empobrecidas culturalmente, cuja soma de conflitos sociais e familiares hipoteticamente os impediria de aprender”[5].
Os estranhos são, portanto, “sujeitos cuja forma de ser e agir na escola não consegue ser enquadrada e codificada de modo claro e inequívoco pelos agentes da pureza escolar idealizada”[6].
O nascimento do estranho, por sua vez, se dá através da positividade de uma narrativa dominante. Ele só aparece após a definição de um projeto normativo feito por um grupo dominante. É este grupo que controla a classificação e designação, tornando sua narrativa, uma forma de dominação.
Para oliveira, o viés psicologizante se mantém como narrativa de dominação no ambiente escolar. Ainda é por ele que as diferenças de aprendizagem são justificadas a partir da classificação de indivíduo em “hiperativos” ou “com déficit de atenção” e, ao mesmo tempo, a saúde emocional está com o estudante quieto, bem comportado, aplicado e compenetrado.
De outro lado, por sua vez, incrementa-se o vocabulário professoral com outras designações não científicas que possuem um poder ordenador/estigmatizador igualmente contundente, como se apresentam os jovens nominados como delinqüentes, imorais, maconheiros, bandidos, perdidos, repetentes, fracos e que não têm futuro[7].
Para além destes, ainda existem aqueles que veem no ensino médio uma utilidade temporária, mas nada relevante a longo prazo. São alunos que não podem ser enquadrados de nenhum jeito acima explícito: não são compenetrados, por que bagunçam, mas tiram notas boas, conseguem lidar com o estilo memorístico do ensino público.
Na impossibilidade de classifica-los e aplicar a disciplina corretamente, eles acabam sendo os estranhos no sistema educacional.
É o estranho, por sua vez, que torna tênue a linha divisória entre o normal e o anormal, porque ele é justamente gerado pela sociedade que não deseja o ter por perto. É seu oposto, seu subproduto. A modernidade, que surge com uma receita para a organização, se perde com a presença dos estranhos, que obscurecem as fronteiras entre o bom e o mau, o aluno compenetrado e o bagunceiro. Estas, por sua vez, deveriam ser vistas claramente por todos os indivíduos.
O estranho causa angústia e incerteza na ação, ou seja, naqueles que dominam o poder da narrativa classificatória. Desse modo, a seu turno, a escola de ensino médio tem produzido muitos estranhos. As antigas oposições agora se confundem, de forma que o mesmo aluno compenetrado, em um dado momento, apresenta-se como o baderneiro em outro. Assim como o aluno passivo e cuja audição parece aceitar os sentidos impostos pelo docente para o ensino médio, ao mesmo tempo em que obtém notas muito boas, locupleta tantos outros momentos da mesma disciplina manuseando seu celular ou zoando com os demais colegas, apesar dos reiterados pedidos de silêncio do professor[8].
O estranho, para concluir, é o elemento que mostra o enfraquecimento do poder disciplinar do sistema educacional. É o indivíduo que faz parte do teatro escolar para obter uma diplomação mínima e depois dar sentido a sua vida de outras maneiras. Se trata, portanto, de uma estratégia de resistência, ainda em elaboração, da juventude perante o sistema educacional.
Em sociedades regidas pela ordem, a presença do estranho é garantida. Agora, deve-se entender como a escola irá lidar com estes elementos.
Referências
[1] ↑ Professor Assistente, na área de Psicologia da Educação, da Universidade Federal do Tocantins.
[2] ↑ OLIVEIRA, Adriano Machado. Entre impuros e estranho: o pensamento de Zygmunt Bauman e a lógica escolar do ensino médio. Revista Espaço Acadêmico, Nº125. 2011, p.2.
[3] ↑ BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. – Rio de Janeiro, RJ:Jorge Zahar Editor, 1998 IN OLIVEIRA, Adriano Machado. Entre impuros e estranho: o pensamento de Zygmunt Bauman e a lógica escolar do ensino médio. Revista Espaço Acadêmico, Nº125. 2011, p.2.
[4] ↑ PATTO, Maria Helena Souza. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. 3ª edição. – São Paulo, SP: Casa do Psicólogo, 2008. IN OLIVEIRA, Adriano Machado. Entre impuros e estranho: o pensamento de Zygmunt Bauman e a lógica escolar do ensino médio. Revista Espaço Acadêmico, Nº125. 2011, p.2.
[5] ↑ OLIVEIRA, Adriano Machado. Entre impuros e estranho: o pensamento de Zygmunt Bauman e a lógica escolar do ensino médio… p.6.
[6] ↑ OLIVEIRA, Adriano Machado. Entre impuros e estranho: o pensamento de Zygmunt Bauman e a lógica escolar do ensino médio… p.6.
[7] ↑ OLIVEIRA, Adriano Machado. Entre impuros e estranho: o pensamento de Zygmunt Bauman e a lógica escolar do ensino médio… p.7.
[8] ↑ OLIVEIRA, Adriano Machado. Entre impuros e estranho: o pensamento de Zygmunt Bauman e a lógica escolar do ensino médio… p.8.
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