Sou herdeira de rezas e benzeduras. De mulheres que encontraram nos contornos da castração social, brechas por onde deixar infiltrar os poderes ancestrais femininos. Mulheres que cultivam remédio para todos os males, entre flores e folhas, histórias e sonhos, palavras e canções. Mulheres fortes, por vezes duras, valentes como um bicho feroz, mas com a sensibilidade de uma borboleta. Daquelas que enquanto choram pela galinha que perdeu os pintinhos, degola outra pra jogar na panela e cozinhar lentamente o almoço que sustenta toda a grande família.

Sou herdeira de mulheres simples, sabedoras, que fazem da rotina um ritual. Com a vassoura varrem os pensamentos ruins, as lembranças difíceis, e assim vão varrendo até a calçada, até a estrada. Fazem da casa um relicário, baús que guardam histórias tramadas no algodão, o café exalando aroma de saudade gostosa. Fazem do quintal um altar, lugar maior que o mundo, composto de silêncios e de restos, repleto de símbolos de poder.

Quintal por aqui se chama terreiro, que na Umbanda é tido como ‘casa religiosa de cura espiritual que pratica o bem e o amor ao próximo’. No significado não difere muito do terreiro de nossas avós. Um pedaço de terra, às vezes um filete entre a parede e o muro do prédio moderno que acotovela a simples casinha caiçara, onde se cultiva plantas de cura e contemplação. Ali tem erva pra chá amargo que cura o estômago, pra jogar na garrafa com cachaça e aliviar dor muscular, pra emplastro e compressa, pra temperar comida e pra benzer verruga. As flores e folhagens vistosas são remédios para a alma, bálsamos em cores, formas e cheiros que acalentam as dores do dia-dia.

Sou herdeira de mulheres de muitos filhos e pouca louça, que aprenderam desde menina o poder de tirar o suficiente do pouco, porque muito é exagero, e sempre tem quem precise mais. Dessas mulheres eu trago a linha e a agulha, as garrafas de tintura curtindo no armário, a florzinha sem vergonha crescendo no quintal. A elas sou grata e peço a bênção pra seguir meu caminho.

Texto: Tailu Nascimento
A foto de capa é de asha Tudor (Google).

Revista Pazes

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