Por Octavio Caruso
Esse Mundo é dos Loucos (Le Roi de Coeur – 1966)
A trama dessa charmosa fábula antimilitarista parte de um conceito simples, instigando uma profunda reflexão que, a despeito da estética compreensivelmente datada, ainda ressoa implacavelmente atual. Durante a Primeira Guerra, o soldado Charles Plumpick, vivido por Alan Bates, um especialista em ornitologia, é enviado por engano a um vilarejo na França para desativar uma bomba deixada pelos alemães. Ao chegar, ele percebe que os moradores do local foram embora e que a cidade foi tomada pelos pacientes de um hospício. O dedo do diretor Philippe de Broca, que aparece em uma breve e hilária ponta como o soldado Adolf Hitler, estava obviamente apontado para os horrores da Guerra do Vietnã, mas o discurso proposto era mais abrangente.
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O Segundo Rosto (Seconds – 1966)
Em sua essência, um pesadelo Faustiano dos mais assustadores. Uma resposta corajosa para a eterna questão: o que você faria se lhe fosse ofertada uma segunda oportunidade na vida? É o que descobre o personagem vivido por John Randolph, quando é convidado a participar de um enigmático projeto. Já tendo passado dos cinquenta anos e dedicado toda sua vida ao trabalho exaustivo, possui uma oportunidade única de renascer com uma nova identidade. Com o auxílio de cirurgias plásticas, recebe sua jovialidade de volta e a liberdade para evitar cometer os mesmos erros. Rock Hudson interpreta o personagem após o renascimento, com uma entrega raras vezes experimentada pelo ator, acostumado na época ao conforto dos papéis de galã.
O Milagre de Anne Sullivan (The Miracle Worker – 1962)
Esse belíssimo filme conta a história real da professora, vivida por Anne Bancroft, que busca incessantemente mostrar as belezas do mundo a uma menina cega e surda, a jovem Helen Keller, uma atuação impressionante de Patty Duke, que já estava vivendo a personagem nos palcos, contracenando com Bancroft. Com muita persistência, ela consegue retirar a garota de uma realidade solitária e depressiva, levando-a a adaptar-se ao mundo, fazendo-a conseguir se expressar. Foi preciso pulso firme por parte de Anne, pois a família da jovem havia contribuído para que ela se colocasse em um pedestal, como revoltada vítima das circunstâncias, da qual foi retirada por intermédio de uma rígida disciplina amorosa.
Zelig (1983)
Em sua genialidade, Woody Allen estrutura esse filme como um documentário sobre Leonard Zelig, um (literalmente) camaleão social da década de vinte. Sem nenhum esforço, ele é capaz de adotar características físicas e mentais de qualquer pessoa com quem se relacionar. Ao lado de franceses, ele conversa fluentemente em francês, com direito até ao clássico bigodinho fino. Mas o que realmente fascina no roteiro é a forma como o personagem se adapta socialmente, como quando discute jargões de medicina ao lado de doutores, com total conhecimento sobre a área. A crítica é certeira, mostrando como as pessoas se moldam, até o caráter, no intuito de agradar e serem aceitas.
O Enigma de Kaspar Hauser (Jeder für sich und Gott gegen Alle – 1974)
Ele não sabia andar ou se comunicar, tampouco entendia que havia outros seres como ele. Como trocavam sua comida durante seu sono, ele acreditava que sua alimentação aparecia como que por mágica, sempre após ele fechar os olhos. Seu único companheiro era um pequeno cavalo de madeira. Sua vida muda quando um homem adentra sua prisão e o entrega de volta à sociedade, deixando-o de pé no meio de uma praça na cidade de Hamburgo. O filme nos questiona sobre o que consideramos ser normal, dentro da estrutura de uma sociedade contraditória, que não sabe como reagir ao entrar em contato com um homem puro, sem cultura e regras a seguir. Os religiosos se revoltam, já que ele resiste à aceitação do mistério da fé. Ele desconhece a ideia de um Deus como força superior e debate questões de lógica com um professor.
A Experiência (Das Experiment – 2001)
O diretor Oliver Hirschbiegel adapta o romance de Mario Giordano e o transforma em uma experiência cinematográfica angustiante. Saber que se trata de uma história real, ajuda a fazer com que nossos olhos evitem piscar, enquanto somos sugados para dentro da trama. Uma equipe de cientistas convoca vinte homens de diferentes origens para uma experiência psicológica em troca de um prêmio em dinheiro. Os participantes são colocados em uma prisão e divididos aleatoriamente em dois grupos: oito deles fazem o papel de guardas e os outros doze, de internos. Os presos devem obedecer às regras impostas pelos colegas que representam figuras de autoridade. No início, a camaradagem reina no ambiente. Mas em pouco tempo, os falsos guardas mudam de comportamento e a violência, mesmo que proibida, preenche as lacunas.
A Caça (Jagten – 2012)
Lucas (Mads Mikkelsen) é um homem bom, adorado por seu filho e seus alunos, incapaz de cometer atos tão cruéis. Somos levados então a um calvário pessoal, onde progressivamente todos os membros da comunidade passam a duvidar de sua inocência. Nenhuma chance é dada a ele, pois todas as famílias da região agarram-se ao inconsciente coletivo do pavor, temendo que ele se aproxime de suas crianças. O leitmotiv da confiança é explorado até o brilhante desfecho, onde o roteiro ainda inclui uma poderosa crítica social e religiosa. O simples benefício da dúvida já seria o suficiente para auxiliar no processo angustiante em que o protagonista se vê vitimado, mas a mensagem que o filme aborda é cruel em sua veracidade: a sociedade, desde o início dos tempos, sempre esteve propensa ao apedrejamento coletivo, algo que requer menos argumentação que a árdua tarefa de tentar enxergar a flor no lodo.
Minha Vida em Cor-de-Rosa (Ma Vie en Rose – 1997)
A primeira sequência do filme já expõe o leitmotiv que conduz a sensível trama. Enquanto os pais de Jerome escondem ritualisticamente em seus uniformes diários a ausência do calor que outrora havia em seu relacionamento, os pais de Ludovic se entregam à vida naturalmente e com real paixão, com o diretor de arte expondo claramente o contraste na paleta de cores que emolduram as cenas. O primeiro momento em que realmente vemos o menino, somos levados a sentir o mesmo choque que seus pais, pois ele está usando o vestido de princesa de sua irmã. Seu pai, temeroso pelo julgamento cruel da sociedade, limita sua corajosa atitude a uma brincadeira inconsequente. Sua mãe corre para fazê-lo retirar com água fria a maquiagem de seu rosto. No rosto da criança, a apatia dos que sofrem diariamente com a ignorância daqueles que deveriam ser mais inteligentes. A absurda noção do pecado, camuflando hipocritamente qualquer desejo sob um véu de pureza, que se rompe assim que o autoproclamado santo se tranca na solidão de seus pensamentos. A ilusão de que se alcança o divino pelo ato da castidade, ignorando que, caso exista, ele perceberia os instintos naturais que não se podem domar.
Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of The Spotless Mind – 2004)
Na Grécia antiga, berço da filosofia, Heráclito afirmava metaforicamente que nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio. O existir é um perpétuo mudar, um constante fluir. Já Parmênides de Eleia, povo pioneiro no uso da dialética, contestava-o afirmando que o ser é único, eterno, imutável, imóvel e infinito. Ele dividia o mundo em sensível, aquele que conhecemos pelos sentidos, e inteligível, mundo que não vemos e não tocamos, mas compreendemos. John Locke argumentava que a identidade do ser, não era definida por características físicas, mas, sim, pela repetida autoidentificação. Logo, a memória torna-se essencial na construção do ser. O que aconteceria caso o homem pudesse manipulá-la, de forma a aniquilar elementos que o fizeram tornar-se quem ele é? Apagar da mente aqueles eventos que ajudaram a construir sua personalidade, afetaria a forma como o ser lidaria com o seu habitat? O filme, dirigido por Michael Gondry, abre esta importante discussão, contando a história do casal Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet).
Através de Um Espelho (Såsom I En Spegel – 1961)
A trama simples utiliza o microcosmo de uma família que passa férias em uma paradisíaca ilha. Karin (Harriet Andersson) acaba de voltar de uma estadia forçada em um hospital psiquiátrico, ainda apresentando sinais de profundo desequilíbrio emocional. Seu marido, vivido por Max von Sydow, seu carente irmão mais novo (Lars Passgård) e seu pai, um homem tão imerso em sua ambição profissional literária, universo onde extravasa suas angústias, sem nunca ter coragem suficiente para resolvê-las, que foi incapaz de estabelecer uma relação de carinho com seus filhos. Um toque de gênio é Ingmar Bergman torná-lo “Deus” para seu próprio filho, que, admirado, percebe ao final que finalmente conseguiu vê-lo/senti-lo. Após seu contato com a “aranha”, que a manipula e a frustra terrivelmente, a jovem esvazia seu copo de esperança. Bergman força essa reflexão em seu público, levando-o a ver que o conceito divino não se limita a um rígido padrão de ideias e condutas, facilmente manipulado pelas religiões mundanas com seus rituais vazios. Práticas que isolam/segregam o homem, ao invés de fazê-lo perceber-se como parte de um todo. Aquele que busca encontrar Deus, não deve fazê-lo em templos, mas, sim, no ato simples de sorrir para estranhos.
Zorba – O Grego (Alexis Zorbas – 1964)
Cada personagem na adaptação da obra de Nikos Kazantzakis pode ser visto como uma representação de elementos da psicologia humana. O poeta/escritor britânico ao interagir com a força livre da natureza, o personagem “Zorba”, estabelece eficiente metáfora a todas as tentativas de se reconectar com suas potencialidades criativas. O personagem vivido por Alan Bates chega à Grécia com a finalidade de tomar posse da herança deixada por seu pai. Ele representa o elemento da comodidade, conduzido por motivações lógicas e cheio de regras autoimpostas. Afastou-se tanto de sua própria natureza/instinto, que drenou sua energia criativa. Sequer uma linha consegue escrever no papel de sua vida. Esquecido de si mesmo, ele encontra sua antítese na forma do falastrão Zorba, vivido brilhantemente por Anthony Quinn, que esbanja descontrole emocional e racional, apaixonado pela vida. Do encontro entre o racional e o impulsivo, nasce uma grande amizade, que enriquecerá a experiência de vida de ambos.
Uma Voz nas Sombras (Lilies of The Field – 1963)
A simples história de um homem desempregado, vivido por Sidney Poitier, em papel que lhe rendeu um Oscar, que, numa parada para consertar seu carro em uma fazenda, acaba conhecendo uma pequena comunidade de freiras. Elas o veem como um enviado de Deus para ajudá-las a construir uma capela no meio daquele fim de mundo. Inicialmente ele se recusa, chega a desistir na metade, mas acaba retornando para finalizar aquela missão. Não existe motivo algum para que ele ajude aquelas senhoras, tampouco seu trabalho será reconhecido, mas ele parece encontrar um significado para sua existência naquele exaustivo trabalho braçal.
Peixe Grande (Big Fish – 2003)
A melhor maneira de se compreender as atitudes de alguém, suas motivações e sonhos, é estabelecendo um muro que divida o que a pessoa acredita ser e sua real personalidade. Suas fantasias e desejos correspondem a uma imagem criada, por traumas, vitórias e derrotas. Uma infância de miséria e fome encaminhará a uma vida adulta em que o desejo por uma mesa farta seja prioridade. As fantasias de uma pessoa não mentem, expõem cruelmente detalhes que aos olhos treinados tornam-se páginas reveladoras em um livro aberto. O filho do protagonista de “Peixe Grande”, não se importava em decifrar os segredos contidos no livro aberto que era seu pai. Jovem ambicioso, preocupado demais com sua vida profissional, sem paciência alguma com aquele nobre senhor e suas histórias repetidas. A perspectiva da morte faz com que o jovem busque conhecer aquela incógnita falastrona, que sempre o deixava envergonhado em suas festas, com seus arroubos criativos. Angustiado com a recusa do pai em se mediocrizar, tornar-se comum, seu filho então decide conduzir uma pequena investigação, que acaba levando-o a constatar que somente a fantasia, o lírico, realmente satisfaz de forma plena.
A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi – 2001)
Chihiro e seus pais descobrem o que acreditam ser um parque de diversões abandonado, quando procuravam um atalho na estrada. As duas personagens encontram de forma inusitada um gatilho que desperta nelas a melhor fuga para seus problemas: um mundo paralelo, que reflete em lindas metáforas todos os estágios da vida, onde as jovens evoluem enfrentando obstáculos aparentemente impossíveis. Chihiro inicia o filme como uma garota ingênua, medrosa e mimada, tornando-se ao final uma mulher madura e valorosa. Miyazaki ainda encontra tempo em sua obra para incutir críticas ao capitalismo, uma sociedade que parece visar apenas o “ter”, não o “ser”. Com tantas animações que parecem subestimar a inteligência e sensibilidade das crianças, mostrar a seus filhos obras como as de Miyazaki, incentivar neles o ato de pescar, ao invés de lhes entregar o peixe já mastigado de animações similares, pode ser um presente inestimável e de efeito vitalício.
Henry – Retrato de Um Assassino (Henry: Portrait of a Serial Killer – 1986)
Henry é um rapaz que vive com seu ex-colega de prisão e sofre de distúrbio que o leva a matar pessoas de formas bárbaras. Quando o colega e sua irmã, que também sofrem de perturbações psicológicas, descobrem seus feitos, são atraídos pela violência, mas ao mesmo tempo se tornam vítimas em potencial. O roteiro não chega nem perto de retratar os aspectos mais grotescos de seus assassinatos, mas, ainda assim, perturba o espectador pela crueza com que aborda o cotidiano do protagonista, um relato realista quase documental, elemento realçado pela fotografia suja, com o orçamento irrisório ajudando a compor uma pegada snuff altamente coerente com o tema. Michael Rooker, vivendo Henry, os seus olhares arrepiam mais do que as cenas que mostram as consequências de seus atos. A ausência de qualquer personagem moralmente correto estabelece um tom depressivo raras vezes alcançado em produções do gênero. Lançado em um período onde a indústria norte-americana estava dominada pelos slashers, McNaughton insere um subtexto de crítica à violência como entretenimento.
Taxi Driver (1976)
Travis Bickle, vivido brilhantemente por Robert De Niro, quer se misturar aos elegantes cidadãos que utilizam diariamente seu trabalho como motorista de táxi nas madrugadas, como ele mesmo afirma, quer ser exatamente como aqueles estranhos que analisa minuciosamente pelo espelho retrovisor e pela janela, mas nunca se interessou por cultura, despreza os livros, típico analfabeto funcional, uma ignorância que alimentou o machismo e o racismo que já se faziam presentes em sua personalidade. Sem noção alguma de elegância, carrega uma jovem que acaba de conhecer para dentro de uma sala de cinema pornô. Em outro momento, ele aponta um revólver para a imagem de um negro sorridente na televisão. Ele não sabe se comportar socialmente, como veterano de guerra na Marinha foi acostumado apenas a seguir ordens sem questionamento, experiência traumática de vida que garantiu a ele uma insônia crônica, motivo principal que o leva a escolher essa profissão. A violência estimulada em sua formação militar é a única forma de expressão que ele considera confortável. Ele não é julgado pela lente da câmera, grande mérito, o espectador é convidado a acompanhar de forma intimista suas ações cada vez mais radicais, tentando compreender suas motivações psicológicas.
Um Corpo Que Cai (Vertigo – 1958)
Um dos símbolos visuais mais fortes no filme, além do verde como símbolo da morte, é a espiral, representando o vazio (o protagonista vive de frágeis ilusões mentirosas) e a impossibilidade do total controle emocional pelo ser humano. Na abertura clássica de Saul Bass ela aparece nos olhos de uma mulher. Quando o personagem de James Stewart olha para seu parceiro morto no asfalto, os membros de seu corpo formam uma espiral. Mais adiante na trama, a Carlotta pintada no quadro mantém seu cabelo preso em forma de meticuloso espiral, assim como Madeleine (a câmera foca nesse detalhe) que a observa. Judy ostenta um corte de cabelo com pequenas espirais caídas sem precisão sobre sua testa, como se simbolizasse um caos que Scottie (James Stewart) precisará controlar. A morte do colega e a presença da enigmática mulher são fatores que auxiliam no gradual descontrole emocional do protagonista. A espiral retorna no brilhante desfecho, representada pela escada da igreja. Analisando literalmente o roteiro, podemos vê-lo apenas como uma engenhosa história de detetive, mas pela ótica da psicologia a trama traça os meandros do labirinto da mente de um homem perturbado por um devastador sentimento de culpa, que o faz tentar desesperadamente transformar Judy (Kim Novak) em um objeto de fetiche, enquanto procura curar o deslocamento do seu ego. Ao resgatar Madeleine do afogamento certo, Scottie se torna Orfeu, disposto a tudo para trazer sua Eurídice de volta do Hades. Como Pigmalião, será sua insistência em recriá-la (recriar a perfeição que idealiza) no corpo de outra mulher a causa de sua tragédia, não sua recorrente acrofobia, um ótimo “MacGuffin”.
A Tortura do Medo (Peeping Tom – 1960)
A coragem do diretor inglês Michael Powell, na vanguarda de sua abordagem, acabou prejudicando sua carreira. Lançado no mesmo ano de “Psicose” de Hitchcock, apresentava ao público um assassino cujos atos de loucura não eram diagnosticados ao final, como ocorre com Norman Bates. Mark, vivido por Karl-Heinz Boehm, que faleceu recentemente, não eximia o espectador da culpa pela possível identificação. A perturbação em sua mente, cuja origem é revelada sutilmente em flashbacks, tornava a empatia ainda mais latente. Bates era um monstro caricato que assistíamos de longe, mas Mark podia ser nosso vizinho, alguém que nos conduzia pela mão e nos tornava cúmplices em seu voyeurismo. O pai, interpretado em uma única cena pelo próprio diretor, uma mente insana com diploma de psiquiatria, capaz de utilizar o próprio filho como cobaia em suas experiências diárias na busca pelo sentido do medo. Em uma época do cinema que primava por ameaças sem tons de cinza, o brilhante roteiro de Leo Marks se aprofunda no trauma do adulto emocionalmente imaturo, incapaz de se afastar de sua câmera portátil 16mm, instrumento que utiliza para eternizar o pavor nos olhos de suas vítimas. A satisfação que obtém ao observar repetidas vezes essas gravações o conecta diretamente ao seu passado, aquele momento perdido no tempo onde perdeu sua inocência, alguns segundos de prazer na tentativa impossível de regredir ao seu molde psicológico original inalterado.
Cisne Negro (Black Swan – 2010)
Como a pintura Rorschach que ornamenta o ambiente em uma das cenas chave da trama, o filme é passível a múltiplas interpretações. A pintura também representa a essência da obra, em que a protagonista valida o conceito freudiano da projeção, inconscientemente atribuindo características negativas de sua própria personalidade a outros personagens (especialmente Lily e sua mãe, que acredito ser uma criação de sua mente). Escolhendo contar sua história a partir do ponto de vista da protagonista, o diretor nunca deixa claro para o público se o que ele vê é real ou uma projeção da mente perturbada da jovem. Darren Aronofsky idealizou o projeto após ficar fascinado com “O Duplo” de Dostoiévski e imaginar uma analogia com a trama do balé “O Lago dos Cisnes” de Tchaikovsky, que também abordava o conceito de identidade. A escolha pelo mundo das bailarinas não poderia ter sido melhor, posto que provavelmente seja aquele em que a busca ininterrupta pela perfeição esteja mais presente (o culto à imagem, expressado sutilmente nos vários espelhos e reflexos no chão). As bailarinas perseguem uma perfeição impossível de ser alcançada e terminam destruindo seus corpos neste cruel processo.
Ela (Her – 2013)
O que nos faz humanos? A capacidade de sermos afetados pelo outro, sentir compaixão e desejo. O protagonista vivido por Joaquin Phoenix trabalha inserindo emoções no subconsciente de estranhos, criando cartas escritas à mão para seus clientes. O futuro se mostra através de aparatos tecnológicos requintados, mas a realidade dos homens é exatamente a que vivemos hoje: pessoas que se cruzam nas ruas e não se encaram; corpos carentes de calor humano mesmo quando próximos. A terrível solidão que se experimenta em grupo. Samantha (Johansson), a voz feminina do sistema operacional, uma ideia que gradualmente se revela através da percepção de Theodore (Phoenix), personificando o elemento que carecia na vida dele: algo/alguém que se importa. Só que ela não é real, mas apenas o resultado de uma dedicada pesquisa no banco de dados dele. Ela suspira, não por necessitar de oxigênio, mas por perceber o efeito no processo de identificação (Freud considerava “a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa”) que esse simples som causa no ser humano. E, tão interessante quanto, temos a personagem vivida por Amy Adams, única mulher com quem ele se relaciona sem demonstrar insegurança. Ela defende uma das melhores frases, o leitmotiv da obra: “Apaixonar-se é uma loucura. É como uma forma de insanidade socialmente aceitável”.
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