Aborto e microcefalia

“O fascismo é fascinante, deixa a gente ignorante e fascinada”
(Engenheiros do Hawaii)

A descriminalização do aborto é uma causa justa, necessária e que merece ser continuamente debatida como objeto de reflexão por toda a sociedade, até que venha a ser realidade no Brasil. Entretanto, este rápido texto não se pretende à abordagem da temática da interrupção legal e segura de todos os casos em que a gravidez é indesejada. A urgência é outra.

Acompanho com um misto de constrangimento e indignação o debate que se abre para a autorização do aborto nos casos de microcefalia, assunto que vem sendo tratado sem qualquer cerimônia em alguns veículos de comunicação e nas redes sociais.

Sob o argumento de que os milhares de casos de microcefalia registrados nos últimos meses seriam resultado de falhas do Estado brasileiro em sua política de saúde pública (o que não deixa de ser verdadeiro) no combate ao mosquito aedes aegypti, vetor do zika vírus, fala-se em resguardar o direito da gestante ao aborto nesta hipótese. Afinal, dizem os defensores da proposta, as mulheres não podem assumir sozinhas o ônus da omissão estatal e, logo, não devem ser obrigadas a dar à luz bebês microcéfalos.

Esse é o momento em que o detector de fascismos parece ter falhado. Talvez porque a iniciativa não parta dos personagens conservadores de sempre, bem conhecidos e que são (com acerto) duramente criticados em suas posturas fundadas na intolerância e no preconceito. Pasmem! Dessa vez é uma fala que vem do outro lado do espectro político, o que evidencia que o fascismo não é privilégio de uma determinada linha ideológica.

É de um oportunismo vergonhoso a proposta, que por enquanto ainda não foi oficialmente disparada, seja no Legislativo ou no Judiciário, embora já produza um debate acalorado por meio de reportagens, entrevistas, artigos e comentários nas redes sociais. Aproveitar este momento de crise profunda no sistema de saúde para buscar a autorização do aborto quando diagnosticada a microcefalia é algo inaceitável. Propor a eugenia como política pública, escolher certa característica do feto – justo a deficiência mental – para definir quem são os indignos de nascer, é algo visto não faz muito tempo em um momento assustador do Século XX. E a lembrança é das piores, quase insuportável.

Não que a discussão sobre o aborto seja pouco importante. Muito pelo contrário, é necessária. Trata-se de uma questão fundamental, mas sob outras premissas que tornam legítima essa bandeira de luta, como o interesse da saúde pública, que deve prevalecer ao trato meramente policial ou criminal da matéria; assim como a afirmação do direito da mulher para dispor livremente do seu próprio corpo. Aliás, a luta histórica do movimento feminista pela descriminalização do aborto jamais pautou essa reivindicação por qualquer forma de distinção quanto à saúde do feto. Todavia, a ideia que vem sendo discutida é veladamente eugênica ao buscar a permissão legal da interrupção da gravidez, com exclusividade, para os casos de microcefalia.

É triste e decepcionante que pessoas de forte militância no campo dos direitos humanos, de atuação incansável nos movimentos pela legalização do aborto, essa causa tão necessária, possam agora correr o risco de verem suas lutas reduzidas ao vexame da eugenia.

Mesmo nas lutas mais difíceis há limites éticos que devem ser respeitados, sob pena de perdermos o que temos de humanidade. É inconcebível que se busque viabilizar a legalização do aborto sob o discurso, mesmo que não verbalizado, do preconceito contra a deficiência mental, o que estigmatiza ainda mais as pessoas que padecem de sofrimento psíquico. E a luta antimanicomial, vale registrar, passa por um momento extremamente difícil no Brasil de hoje. Basta um ligeiro olhar para a coordenação de saúde mental do Ministério da Saúde, ocupada por militantes que protestam diante da iminência de retrocessos que se vislumbram no horizonte próximo, para se ter uma ideia.

É fato que as dificuldades são extremas na definição de estratégias dos movimentos pela descriminalização do aborto, o que torna em certo aspecto compreensível a concepção dessa proposta quando milhares de gestantes se veem ameaçadas pelo zika vírus. Mas não há nada, absolutamente nada, que justifique o recorte oportunista da microcefalia para, só ela, autorizar a interrupção da gravidez.

Se por um lado é natural que tenhamos a discussão neste momento crítico (é nas crises que o tema emerge), por outro é preciso que seja feita com um pouco mais de sensibilidade e cuidado, de forma a não condicionar o aborto unicamente à microcefalia para, assim, não estigmatizar ainda mais a deficiência mental. É também necessário que o debate público aconteça dentro de uma perspectiva ampla, que contemple a universalidade dos direitos humanos. Afinal, o movimento feminista não pode ser indiferente às lutas do movimento antimanicomial.

Pessoas admiráveis estão expostas pela opinião lançada publicamente, o que deve ser respeitado diante do histórico silenciamento do movimento feminista e de suas ativistas. Entretanto, a luta antimanicomial não é menos importante. Respeito e compaixão devem orientar o debate que, especialmente agora, deve afastar-se de eventuais fascismos, mesmo os fascinantes.

A descriminalização do aborto é tema de interesse geral, mas não pode jamais se pautar pelo pânico instaurado a partir da epidemia do zika vírus; e, menos ainda, pela eugenia.






Haroldo Caetano da Silva é promotor de justiça, mestre em Direito e doutorando em Psicologia Social.